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quarta-feira, dezembro 03, 2025

Azeite - Inovar é mudar de quadrante, não só de produto (parte II)

Parte I.

Antes de mais quero chamar a atenção para o impacte da subida do preço nas contas de uma empresa. Um impacte tremendo em que muitos empresários à primeira não acreditam. A maioria quer que lhes façam as contas, querem ver com os seus próprios olhos. Recomendo "Aumentar preços (Parte III)".

Também recomendo "Pregarás o Evangelho do Valor" para ver o impacte de mexer no preço, para cima ou para baixo, no lucro com perda ou ganho de clientes.

Quando uma PME considera a hipótese de dar um salto para o quadrante 3 ou 4 tem medo. Por isso, recomendo uma reflexão para o gráfico deste postal "Ousar olhar para o nicho - o poder dos números":

Ontem o The Times trazia este artigo "Booming sales suggest olive oil gifts are no flash in the pan". 

O artigo destaca a ascensão do azeite de alta qualidade como presente de Natal sofisticado, substituindo bebidas alcoólicas como opção popular entre os consumidores. A mudança de hábitos de consumo, associada à valorização da gastronomia, da autenticidade e da longevidade dos produtos, está a impulsionar fortemente as vendas de azeites premium, trufados ou infusionados. A tendência reflecte um maior interesse por alimentos duráveis, saudáveis e de identidade forte — e oferece oportunidades claras para os produtores que saibam posicionar-se nesse segmento.

Quando se pensa em aumentar o rendimento agrícola só se vê a hipótese clássica: aumentar a produção, ou seja, continuar no quadrante 1 (ver Parte I). Recordar "Subsídio para um ministro (parte II)"

E saltar para o quadrante 4? 

"Spotting a bottle-shaped present under the Christmas tree once meant a welcome addition to one's drinks cabinet. Now it is increasingly likely to mean a foodie treat, such as expensive olive oil.

Mazen Assaf, an olive oil sommelier and founder of The Olive Oil Guy, said that shoppers were finally becoming as interested in the quality of oils as they were about their choice of wine.

Sales of his limited-edition bottles (costing £21 for 250ml) rose 598 per cent last Christmas, he said, and this year are on track to surpass that.

...

Nourished Communities, which offers "superior category" cold-pressed oils made from koroneiki — the "king" of Greek olives — has also enjoyed a sales boom this year. 

...

Earnings at MasWorth, which produces oils at its family groves across Greece, have grown from £200,000 five years ago to nearly £3 million and it says that pre-Christmas gift shipments have increased fourfold.

Panos Manuelides, the founder of Odysea oils, which are produced in the Peloponnese region of southern Greece, said that sales of his shimmering gold tins are up 56 per cent on last year."

A mensagem é inequívoca: o azeite premium consolidou-se como presente gastronómico valorizado. Está a acontecer primeiro no Reino Unido, mas a dinâmica vai espalhar-se — e Portugal tem vantagens naturais para acompanhar esta tendência.

Assim, mais do que promover o aumento da produção massificada de azeite, muitas vezes recorrendo à produção intensiva que gera azeites de pior qualidade (teor inferior de polifenóis), decidir começar a fazer o caminho para o quadrante 4 (há bocado escrevi "saltar" e talvez não seja a melhor palavra).

O primeiro passo para entrar no quadrante 4 é definir claramente a identidade do azeite. Cada produtor precisa de saber — e de ser capaz de explicar — o que torna o seu azeite especial. A variedade usada, a altitude e o tipo de solo, o clima, o momento da colheita, o método de extracção e, sobretudo, o teor de polifenóis, que é decisivo nos mercados premium, formam a base dessa identidade. Sem esta clareza, é impossível construir valor.

A seguir vem a história. O mercado premium não compra apenas azeite; compra significado. A história da família, o olival de onde vem cada lote, o ano da colheita, a raridade de uma variedade ou a autenticidade de uma região são elementos que transformam um produto agrícola numa experiência cultural. É por isso que as edições limitadas, quando têm uma narrativa sólida por trás, funcionam tão bem: comunicam exclusividade e dão ao consumidor a sensação de estar a adquirir algo único. (Quando penso em história, recordo sempre uma pequena casa com as suas osgas, junto à N 221 depois de Barca D'Alva e a caminho de Freixo de Espada à Cinta, o calor, as vinhas, as amêndoeiras e o Douro).

Depois, é preciso pensar deliberadamente na embalagem. No quadrante 4, a embalagem deixa de ser um recipiente e passa a ser parte integrante do produto. Uma garrafa elegante, uma lata com design cuidado, elementos visuais inspirados no mundo do vinho ou dos perfumes, rótulos que explicam porque é que aquele azeite é realmente premium — tudo contribui para elevar a percepção de valor. Em última análise, o objectivo é simples: que o azeite pareça um presente e não um produto de mercearia.

A partir daqui torna-se natural desenvolver uma gama pensada para oferecer. Garrafas mais pequenas, caixas de presente, kits de degustação, edições numeradas ou azeites infusionados — trufado, picante, limão, alecrim — ajudam a tornar o azeite numa experiência. O consumidor moderno aprecia diversidade e novidade; quer experimentar, comparar e surpreender alguém com algo distinto.

Mas nada disto funciona sem educação. Tal como o vinho, o azeite premium precisa que o consumidor perceba o que está a comprar. Notas de prova, sugestões de harmonização, fichas técnicas simples, vídeos curtos sobre degustação, explicações acessíveis sobre polifenóis ou pequenas provas comentadas fazem uma diferença enorme. Quanto mais o consumidor entende, mais valor atribui — e mais está disposto a pagar. Volto à Parte I: Mudar de roupa no escuro, talvez seja importante, mas ninguém nota.

A estratégia também implica reposicionar a forma como se vende. Um azeite de quadrante 4 não tem lugar em canais indiferenciados. Ganha vida nas plataformas de retalho gourmet, nas lojas especializadas, nos mercados urbanos mais exigentes, em parcerias com chefs, em clubes de assinatura inspirados no modelo do vinho, no e-commerce directo ou nas propostas de hotéis boutique e cabazes corporativos. São estes canais que valorizam estética, história e exclusividade.

Por fim, o Natal deve ser encarado como uma “super-sazonalidade”. É a grande janela anual em que o azeite premium pode brilhar. Campanhas específicas, embalagens natalícias, fotografias inspiradas em luxo e tradição, storytelling associado à época, pré-vendas lançadas no início do Outono e parcerias com marcas de chocolate, vinho ou queijos artesanais criam um ecossistema que potencia vendas e visibilidade. No Reino Unido, esta época já é o principal motor de crescimento dos azeites premium — e não há razão para que os produtores portugueses não aproveitem o mesmo movimento.

Talvez seja uma forma de ultrapassar a Lei dos Rendimentos Decrescentes na Agricultura.

terça-feira, dezembro 02, 2025

Inovar é mudar de quadrante, não só de produto

A economia, ao contrário do que muitos pensam, não se move em revoluções constantes. Move-se em equilíbrios pontuados; longos períodos de estabilidade, interrompidos por mudanças rápidas e profundas. O termo é emprestado da biologia evolutiva: durante muito tempo, nada muda; depois, tudo muda de repente.

As empresas, embaladas por esse falso conforto, tendem a adormecer no quadrante onde sempre estiveram:

Quadrante 1

Produto actual, mercado actual. 

O que fazemos. Para quem o fazemos.

Mas quando o mundo muda - por novos concorrentes, novas exigências dos clientes, novas regulações ou rupturas tecnológicas - é preciso decidir para onde saltar:


Saltar para o Quadrante 3: novo mercado, mesmo produto
Em 2012, numa feira transmontana, uma artesã queixava-se de não vender colchas de linho. Talvez o problema não fosse o produto, mas sim onde o tentava vender. Na altura escrevi:
“Talvez precisasse de frequentar outras feiras, noutros países. Talvez precisasse de divulgar os seus produtos na internet. Talvez precisasse de os expor nas quintas de turismo rural que florescem no Verão entre a Beira-Alta e Trás-os-Montes.”
É o salto clássico para o quadrante 3: procurar nova procura sem mudar a essência da oferta.

Saltar para o Quadrante 4: novo produto, novo mercado
Em 2013, contei a história da transformação do burel de Manteigas. Um tecido rústico, tradicional, reinventado por uma designer belga e apresentado ao mundo com uma nova linguagem, um novo design e novas funções.
O tecido não mudou. Mas o que se fazia com ele, sim.
Passou-se de cobertores a design. De Manteigas ao Japão.
Foi um salto de quadrante — e de ambição — sem perder autenticidade.

E o Quadrante 2? Novo produto, mesmo cliente?
Aqui o caminho é menos claro. Algumas hipóteses:
  • Um produtor de fruta que muda para práticas biológicas, sem o cliente se aperceber.
  • Um fabricante que melhora a fórmula do seu produto, mantendo a marca e a embalagem.
Mas, sem educar o cliente, provar a vantagem e reconfigurar a percepção, esse salto tende a ser invisível. É mudar de roupa no escuro: talvez seja importante, mas ninguém nota.

E quando se tenta, por exemplo, vender um vinho mais caro ao mesmo cliente, sem convencê-lo da diferença, arrisca-se o insucesso.

Não basta mudar o produto. É preciso mudar a percepção.

Por isso, sair do quadrante 1, em qualquer direcção, quase sempre implica:
  • mudar de canais,
  • mudar a comunicação,
  • mudar a equipa comercial, e
  • mudar a forma como o cliente vê o produto.
Especialmente se falarmos de PMEs, que não podem competir em preço, é essencial que a mudança traga valor percebido e margens maiores.

O problema do equilíbrio pontuado é este: quando o abalo chega, já é tarde para começar a pensar.
Mais vale preparar o salto enquanto ainda se tem margem para o fazer em segurança.

Amanhã, um exemplo com azeite.

sábado, novembro 29, 2025

Outro momento de especulação

Ontem no FT um artigo interessante sobre estratégia, "H&M moves upmarket to avoid being fast-fashion victim".

A H&M está a mover-se para um posicionamento mais "upmarket" - produtos de maior qualidade, margens mais altas e menos dependência do modelo clássico de fast-fashion — para evitar ser ultrapassada pela concorrência chinesa ultrarrápida como a Shein e a Temu.

""an industry that is changing at a furious pace".

...

H&M has been increasingly squeezed from above by the likes Zara and from below by cheaper rivals including Shein, Temu and Primark." [Moi ici: A H&M está a subir na escala de valor para evitar ser vítima do fast-fashion ultrarrápido (Shein, Temu)]
...

Daniel Ervér told the Financial Times that the Swedish fast-fashion retailer was on "a very long journey" towards increased profitability

... 

Operating margins fell from more than 20 per cent in 2010 to 3 per cent in 2022. They reached 8.6 per cent in the third quarter this year, up from 5.9 per cent a year earlier. [Moi ici: A empresa está numa trajectória de longo prazo para melhorar margens e rentabilidade]

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With the right product, we sell more with less. It becomes a more effective way of running the business," said Johanna Klingspor, H&M's head of creative development.

...

"We need to stop doing what doesn't make a difference for the customer and really shift resources and money to what makes the difference." [Moi ici: A estratégia passa por simplificar a gama, reduzir complexidade e vender mais com menos]

...

One top-ten shareholder said: "H&M were caught in between - not in Zara's price point, and definitely not in Shein's. They let the margins slide for too long." A fashion analyst added: "Ervér's elevation strategy is taking the company in the right direction as it helps to reduce the H&M brand's exposure to value fashion - the most competitive segment of the market and the most exposed to competition from not only the likes of Shein, but also second-hand platforms."

...

given how the competitive landscape has changed, we need to step up our game,""

Diagnóstico? O baixo custo deixou de ser um lugar seguro.

A H&M foi, durante anos, sinónimo de fast-fashion. Mas o modelo que lhe deu escala e margem já não funciona porque:

  • Shein, Temu e Primark ocupam o extremo ultra low-cost com velocidade e custos impossíveis de igualar.
  • Zara ocupa o espaço imediatamente acima, com moda mais rápida, mais sensorial e com preços mais altos.

A H&M está espremida entre:

  • uma pressão descendente (concorrentes mais baratos e mais rápidos)
  • uma pressão ascendente (concorrentes mais caros e mais desejados)

O meio é o pior lugar para estar.

O CEO da H&M reconhece isto explicitamente:

“We sell more with less – it becomes a more effective way of running the business.”

Ou seja, só há uma saída — subir na escala de valor

Café, Paris e Mongo


No FT de ontem um artigo sobre Mongo, "In Paris, the next coffee revolution is quietly brewing".

O artigo descreve a nova revolução do café em Paris, caracterizada por uma mudança profunda na forma como a cidade consome e produz café. 
"In 2010, The New York Times published an article questioning why coffee was so bad in Paris. But by 2019, the FT's Simon Kuper was celebrating a Parisian coffee revolution - a transformation marked by independent roasters, many founded by immigrants familiar with high-quality coffee from Australia or the US, who introduced a focus on artisanal roasting methods and espresso drinks like the cortado or flat white. Today, the city's coffee culture has entered an exciting new phase, which is less centred on shaking off a bad reputation and more on micro-roasteries pushing for higher degrees of coffee nerdery and distinctiveness. In most neighbourhoods, you can find coffee shops championing single-origin beans and state-of-the-art brewing techniques. It doesn't come cheap, but it means consumers enjoy coffees that are layered and lingering - more akin to a €15 glass of wine than a €1.50 shot of espresso."
Pequenos micro-torrefactores e cafés como o Taná e o Substance Café lideram esta evolução, em que o café é tratado quase como um vinho: camadas aromáticas, terroir, fermentação controlada, co-fermentação com frutos, experiências com variedades raras. O consumidor parisiense, cada vez mais informado, procura cafés únicos, expressivos e tecnicamente impecáveis. As lojas investem em processos, estética minimalista e rituais de preparação que elevam o café a uma experiência sofisticada e identitária.
"This meticulous focus on origin, processing and brewing precision isn't unique — but part of a larger trend shaping Paris's speciality coffee scene. Kévin David of Moklair, a Reims roastery stocked across Paris, says the future lies in varietal diversity, refined drying techniques, and "processes that make coffee both clearer and deeper".
So while David chases clarity, Morceau pursues purity and Gagnaire values innovation, it somehow all adds up to a scene that feels unmistakably Parisian."

Durante décadas, o café parisiense era previsível, homogéneo, com pouca variação — exatamente o tipo de mercado “suave” e uniforme do século XX, onde todos correm atrás do mesmo pico e se copiam mutuamente.

Agora, o que Paris tem é o oposto:

  • micro-torrefações,
  • fermentações esotéricas,
  • co-fermentações com frutas,
  • perfis sensoriais raros,
  • cafés tratados como terroirs únicos.

Não há um pico para o qual todas as lojas correm. Há mil picos pequenos, um para cada tribo de gosto, exactamente como na minha metáfora de Mongo. Paris saiu do século XX e entrou em Mongo.

No texto lá em cima sobre Mongo escrevi:

"Um planeta, um mercado, pleno de diversidade que resulta do casamento das oportunidades que a tecnologia disponiliza para aumentar a variedade das ofertas, com o estilhaçar das barreiras mentais e culturais que condicionavam as opções pessoais de cada um."

É isto que o artigo mostra: consumidores capazes de distinguir cafés fermentados 30 horas vs. 70 horas, cafés lavados vs. anaeróbicos, notas de uva, maçã, flor de laranjeira.

O consumidor já não quer “um café”. Quer o seu café, adaptado ao seu pico, ao seu nicho, à sua tribo de gosto. 

Em "Diferenças entre a concorrência no século XX e em Mongo" escrevi:

"Mongo é onde não faz sentido copiar o que o outro faz, é onde faz sentido ser diferente"

E o artigo mostra lojas como:

  • Taná, focado em fermentações extremas,
  • Substance Café, obcecado pela precisão e pela clareza,
  • Terres de Café, com cafés raros de origem única.

Cada loja escolhe um pico, uma tribo, um gosto. Não tentam agradar a todos. Não tentam competir no centro.

E não estão em guerra umas com as outras — estão distantes nos seus próprios nichos.

Isto é textbook Mongo competitivo:

  • picos numerosos,
  • baixa volatilidade entre empresas,
  • clientes fiéis ao seu nicho,
  • produtos muito estáveis e diferenciados.

Nos modelos do século XX, as empresas mudam constantemente para roubar clientes na zona central comum (o “dance around the peak”) 

Em Mongo, é diferente:
  • cada empresa foca-se no seu pico,
  • aprofunda a técnica, e
  • procura diferenciação radical.
O artigo descreve exatamente aquilo que defini como Mongo: 
  • um mercado hiper-fragmentado,
  • milhões de nichos, 
  • a morte do mercado de massas, 
  • empresas que não competem em imitação mas em profundidade, 
  • consumidores que procuram a sua tribo, o seu gosto, o seu pico, 
  • estabilidade competitiva dentro de nichos muito diferenciados.
A revolução do café em Paris não é só uma tendência gastronómica; é um estudo de caso perfeito da minha metáfora de Mongo em acção.

sexta-feira, novembro 28, 2025

Um momento de especulação



O que tem mudado no contexto externo de uma empresa como a Sicasal? Quando se pensa a sério, vê-se um oceano de mudança profunda e desfavorável. 

O retalho alimentar transformou-se no actor dominante, com o hiperdomínio das marcas próprias do Continente, Pingo Doce e Lidl. Estas marcas ocupam hoje quase todas as categorias de charcutaria e carnes transformadas, impondo preços muito baixos e margens reduzidas aos fornecedores. Apenas empresas de grande escala conseguem acompanhar esta pressão, deixando empresas médias como a Sicasal numa posição estruturalmente frágil.

Ao mesmo tempo, os custos operacionais subiram de forma significativa: matérias-primas voláteis, energia extremamente cara num sector dependente do frio e da refrigeração, mão de obra mais escassa e dispendiosa e requisitos sanitários cada vez mais exigentes. Quando os preços de venda estão comprimidos e os custos sobem simultaneamente, a margem desaparece rapidamente.

Por exemplo, a nível da matéria-prima:
"O grau de orientação exportadora de Portugal para a carne de suíno em 2020 situou-se nos 20,1%, longe dos 8,1% do ano 2010."
A concorrência internacional agravou ainda mais a situação. Espanha consolidou um sector de carnes transformadas com empresas muitíssimo maiores, custos unitários mais baixos e logística integrada, invadindo com facilidade o mercado português. O consumo também mudou: menos carne de porco, maior preocupação com a saúde, procura por produtos clean label e substituição por alternativas mais baratas. As empresas dependentes de produtos tradicionais ficaram especialmente expostas.

O resultado é um ambiente externo muito mais hostil, em que a escala, a eficiência e a capacidade de adaptação deixaram de ser vantagens competitivas — tornaram-se pré-requisitos mínimos para sobreviver.

O último parágrafo, para quem conhece este blogue, abre a porta para a alternativa: fugir desta pressão, fugir da comoditização. 

Enquanto escrevo isto, o olhar foge-me para um segundo ecran onde leio o último parágrafo do artigo "Britain must remove the pension triple lock", publicado no FT de 26 de Novembro:
"The longer we delay taking action, the more we bake in future cost pressures that will be harder to unwind."

É a estória do campo de possibilidades que encolhe, e dos graus de liberdade que se perdem, 

O contexto externo muda e, muitas vezes, como neste caso, de forma muito desfavorável, mas as empresas podem mudar e adaptar-se ao novo mundo. O problema é que mudar implica sair da zona de conforto. Ainda esta semana, numa reunião, falávamos sobre reconhecer a dor, os sintomas que nos dizem que a empresa tem um problema, quando um dos participantes nos alertou para algo mais subtil, para a facilidade com que mascaramos os sintomas com "medicamentos" com expedientes legais, mas estrategicamente mortais. Sair da zona de conforto é, por exemplo, perceber que há um potencial que parece estar a ser perdido, mas explorá-lo implica mudar algo na identidade da organização. 

A Sicasal chegou a um ponto em que continuar a jogar o jogo do “barato e massificado” deixou de ser uma opção viável. O mercado mudou mais depressa do que a empresa, e a combinação de pressão das marcas próprias, da concorrência espanhola, de custos elevados e de alterações nos hábitos de consumo empurrou o negócio para margens cada vez mais frágeis. Mas isso não significa que não haja um caminho possível — apenas que esse caminho já não passa pela lógica tradicional de volume. Passa, sim, por foco, diferenciação e valor acrescentado.

O primeiro passo teria sido — e ainda pode ser — olhar de frente para os números. Uma análise rigorosa, categoria a categoria, cliente a cliente, para perceber onde se ganha realmente dinheiro e onde se perde. Muitas empresas industriais carregam consigo um “cemitério de produtos”: referências que ocupam capacidade, geram complexidade e não trazem margem. Eliminar 20 ou 30% desses produtos liberta caixa, simplifica as operações e devolve controlo ao planeamento. Sem esta limpeza inicial, qualquer transformação assenta em areia. Recordo sempre o regresso de Jobs à Apple.

Depois, a Sicasal teria beneficiado de reduzir drasticamente a dispersão do portefólio. Em vez de tentar agradar a todos os canais, deveria ter construído três pilares claros: 
  • uma linha B2B e food service, onde conta a consistência, o corte, o porcionamento e a fiabilidade;
  • uma gama premium ancorada na tradição portuguesa, no porco preto e em produtos curados com identidade; e 
  • uma linha moderna, clean label, menos sal e rótulos curtos, capaz de competir em nichos do retalho onde se valoriza saúde e qualidade. Este tipo de foco não só cria valor, como devolve sentido à marca.
Finalmente, a Sicasal teria de desenvolver os mercados onde pode ser escolhida pelo que é, e não pelo preço por grama: exportação selectiva para comunidades portuguesas e nichos mediterrânicos; parcerias com chefs, hotéis e cantinas; presença em retalho especializado; e um relacionamento mais forte com o canal Horeca, onde o serviço e a adaptação contam mais do que o preço.

Eventualmente, será necessário algum tipo de investimento para aumentar a eficiência e reduzir custos operacionais.

A tese estratégica é simples: a Sicasal não tem futuro como fornecedora de produtos baratos num mercado dominado pelas marcas brancas. O futuro, se existir, está naquilo que ainda só ela pode ser: portuguesa, fiável, adaptável, com identidade e com valor. Menos volume, mais margem. Menos dispersão, mais foco. Menos sobrevivência diária, mais construção deliberada de uma empresa que sabe exactamente para quem quer produzir — e porquê. Claro, a Raporal e a Purdue ilustram que é preciso ter paciência estratégica e o que acontece quando não se a tem.

Mas isto é reflexão de um outsider que vê as coisas de longe e filtradas por aquilo que chega aos jornais.

BTW, isto fez-me recuar ao dia 10 de Setembro de 2001, seguia no meu carro vindo do Norte para realizar uma auditoria de certificação na cidade de Montijo. Ao chegar à cidade, ficou-me gravada na memória uma série de ruínas industriais associadas ao sector do porco. Certamente, já resultado da adesão à CEE e de algumas alterações na distribuição grande em Portugal.

Esta semana ouvi mais um episódio de Fall of Civilizations, desta feita sobre a queda do império persa. Já nos últimos 30 minutos, acompanhamos a entrada do exército macedónio comandado por Alexandre na Ásia Menor, território pertencente ao império persa. Os persas perguntaram aos mercenários gregos que tinham ao seu serviço como combater os macedónios. Estes disseram-lhes, não tentem um confronto directo. Eles estão tarimbados por anos e anos de guerras ao serviço de Filipe para unificar a Grécia, e vocês não têm uma guerra a sério há muito tempo. E depois deram a solução: queimem-lhes a logística, incendeiem as cidades e campos que eles vão pilhar para se alimentar. 

E os persas horrorizados responderam:
- Queimar as nossas cidades?! Destruir as nossas cidades?! Não, isso não. 

A maravilha do império persa, que era a sua rede de estradas, fez com que os macedónios limpassem o império em pouco tempo.

quinta-feira, novembro 27, 2025

Um momento para pensar com calma

A propósito de "Grupo de Guimarães vai adaptar fábrica para produzir botas para militares"

Há notícias que pedem celebração imediata e outras que pedem reflexão serena. A entrada da AMF Safety Shoes no segmento militar é, sem dúvida, um sinal de dinamismo industrial e ambição: uma empresa de Guimarães capaz de produzir 900 mil pares por ano, que exporta 90% da sua produção, e que quer entrar num mercado onde a Europa está a reforçar orçamentos de defesa e em que existe procura real. 

Mas há momentos em que vale a pena parar e fazer duas perguntas difíceis — não por pessimismo, mas por responsabilidade estratégica.

Será que este segmento faz sentido para esta empresa?

O mercado militar é muito diferente do mercado de calçado técnico para a indústria. No papel, trata-se de uma oportunidade: volumes elevados, estabilidade contratual, visibilidade europeia. Mas na prática, o processo de aquisição militar assenta frequentemente num princípio simples: ganha quem oferece o preço mais baixo. (recordar a cena do filme Armageddon)

E isto levanta uma questão essencial: Será que o cliente militar está disponível para pagar aquilo em que esta empresa é realmente boa?

Ou será que o processo de concurso tenderá a esmagar o valor acrescentado para que caiba num preço mínimo?

É uma dúvida legítima.

Num segmento onde a diferenciação técnica existe, é importante perceber se esses factores são valorizados ou se, no fim, a variável dominante é o preço unitário.

Se o valor não for pago, a excelência deixa de ser vantagem e torna-se apenas um custo.

Será que faz sentido fazer este produto na mesma fábrica que produz séries pequenas e inovadoras?

Outra questão que merece ponderação é a mistura de lógicas industriais.

Produzir botas inovadoras, com séries pequenas, ciclos curtos, experimentação rápida e grande flexibilidade, é uma coisa. Produzir equipamento militar para concursos públicos, com volumes elevados, especificações rígidas e margens apertadas, é outra coisa completamente diferente. A notícia refere que a empresa prevê “duas linhas diferenciadoras: uma com inovação e outra mais tradicional". Isso mostra que a própria AMF já reconhece a necessidade de separar as lógicas produtivas. A questão é saber se essa separação será suficiente.

Porque misturar operações com ADN tão distinto pode gerar tensões reais (e recordo o velho Skinner e a sua plant within a plant:

  • competição interna por recursos;
  • prioridades contraditórias;
  • custos fixos mais elevados do que o segmento militar suportará;
  • risco de a linha “inovadora” perder agilidade;
  • risco de a linha militar contaminar a cultura industrial com uma lógica de custo mínimo.

Não é raro ver empresas excelentes a perderem o foco quando tentam servir dois mundos com expectativas e modelos económicos incompatíveis.

Não é um problema técnico — é um problema estratégico.

Misturar estas duas lógicas (calçado inovador e calçado militar) na mesma linha, com as mesmas pessoas, os mesmos gestores, as mesmas métricas e a mesma cultura operacional é pedir problemas.

Skinner ensinou-nos que uma fábrica tem de ser ‘focused’. Quando duas lógicas industriais coexistem — inovação de alta variedade e concursos públicos de grande volume — a empresa entra num conflito interno permanente. A solução não é misturar; é separar. Seja fisicamente, seja criando PWPs: mini-fábricas com identidade própria, métricas próprias e cultura própria.

Uma reflexão final

Nada disto diminui o mérito da AMF Safety Shoes.

Antes, pelo contrário: quando uma empresa chega onde esta chegou, merece exatamente este tipo de reflexão séria — porque está numa posição em que decisões estratégicas moldam décadas, não anos.

O objetivo não é travar a ambição, mas garantir que ela assente sobre três perguntas que todos os líderes responsáveis devem fazer:

Este cliente valoriza realmente aquilo que nos diferencia?

Este segmento tem margem para pagar o nosso nível de competência?

É prudente misturar lógicas industriais tão diferentes sob o mesmo tecto?

Se a resposta for sim — óptimo.

Se a resposta for talvez, vale a pena investigar.

Se a resposta for não, é sinal de que a empresa precisa afinar a sua direcção antes de avançar.

Decisões estratégicas só são fortes quando nascem da dúvida certa.

E estas duas dúvidas, neste caso, não são apenas legítimas, mas também essenciais. Mas isto é reflexão de um outsider que vê as coisas ao longe e filtradas por aquilo que chega aos jornais.


segunda-feira, novembro 24, 2025

Quando o contexto revela o caminho

Não vejo televisão o suficiente para apanhar estas coisas, mas o Twitter faz o serviço:

Não acredito que o candidato Cotrim de Figueiredo tivesse pensado nesta postura de início. Ele vinha e vem, tal como Catarina Martins, pagar ao partido o favor de o terem posto nas férias de Bruxelas por pelo menos quatro anos. Acontece que algures, perante o contexto de candidatos adversários mais ou menos acinzentados, terá tropeçado na oportunidade de fazer figura de candidato fora do sistema, e a coisa terá resultado. Ele e a sua equipa terão percebido o feedback e terão decidido aprofundar a postura e seguir cada vez mais por aí.

Não sei se vai ter sucesso, ou melhor, não sei qual o grau de sucesso que vai ter, mas isso é irrelevante para o tema deste blogue. É assim que algumas empresas descobrem as chamadas estratégias emergentes.

Há momentos em que uma empresa — ou um candidato político — tropeça numa oportunidade inesperada. Não foi planeada, não constava nos memorandos internos, não decorre de grandes quadros teóricos nem de modelizações exaustivas. Surge quase por acidente: um gesto, uma reacção do público, um comentário nas redes sociais, uma pequena polémica ou, simplesmente, um contraste favorável com concorrentes mais pálidos (mais beges). É o início de uma estratégia emergente. Arrisco mesmo escrever, se ele esperasse e quisesse mesmo vencer, estaria tão compartimentado, tão crente num Grande Plano, que nunca arriscaria seguir uma intuição.

No princípio, esta descoberta é frágil, tímida, pouco definida. Não tem nome, não tem doutrina, não tem manual. Tem apenas uma coisa: um sinal inicial de validação externa. Aquele instante em que o público reage com mais energia do que o esperado, em que se percebe que ali há qualquer coisa, ainda difusa, que pode diferenciar.

Mas essa validação inicial é apenas o ponto de partida. Uma estratégia emergente não nasce pronta. É insípida, não porque seja má, mas porque ainda não tem forma, ainda não encontrou o seu “porquê” e o seu “como”. Sabe-se apenas que funciona um pouco, num contexto específico, com certas pessoas. Falta-lhe profundidade. Falta-lhe consistência. Falta-lhe alinhamento com o que a organização é por dentro. E aqui entra a liderança: transformar aquele pequeno sinal em algo coerente, repetível, robusto. Uma oportunidade só se torna estratégia quando a liderança a trabalha, refina, torna nítida, disciplina e a articula com os recursos, capacidades, cultura e rotinas da organização.

Este processo de dar forma a algo que surgiu do fora para o dentro é delicado. Implica criar o tal fit, a harmonia entre o exterior e o interior, entre o que o público percebe e o que a organização pode entregar de forma consistente. Implica abandonar ideias antigas, reconfigurar práticas internas, ajustar mensagens, e sobretudo reconhecer que o contexto descobriu uma possibilidade antes da organização a compreender plenamente. É assim que surgem algumas das melhores estratégias: não como planos elaborados em salas fechadas, mas como sementes vindas do mundo real, que uma liderança atenta rega, poda e transforma numa identidade forte e credível.

A estratégia emergente é, em última análise, a capacidade de aproveitar uma onda antes de saber exactamente para onde leva, e depois aprender, corrigir e construir enquanto se navega. As organizações que sabem fazer isto criam uma vantagem rara: conseguem alinhar-se com o futuro enquanto ele ainda está a acontecer.

Continua.

sábado, novembro 22, 2025

Uma redefinição da identidade ao vivo e a cores

A Unilever está a considerar vender várias marcas britânicas históricas — Marmite, Colman’s e Bovril — como parte de um esforço para cortar custos e recentrar o negócio nas áreas de beleza e cuidados pessoais, consideradas core. A decisão insere-se numa estratégia mais ampla, liderada pelo novo CEO Fernando Fernández, para alienar marcas de baixo desempenho e simplificar o portefólio global.
"Unilever, the consumer goods giant, is said to be considering selling off the heritage British brands Marmite, Colman's and Bovril as part of a cost-cutting drive.
The move is part of a shift led by Unilever's chief executive, Fernando Fernández, to shed underperforming areas and refocus on its core beauty and personal care divisions."

Não sei se escrever "as part of a cost-cutting drive" é uma descrição correcta do que se passa. Talvez seja pobre e enganadora. A Unilever não está simplesmente a reduzir gordura. Está a remover peso morto para criar tracção. Está a libertar capital, talento e atenção para os motores de crescimento do futuro.

Considero este caso um bom exemplo para ilustrar por que tantos países estaganam. Porque as suas empresas estagnam. E as empresas estagnam quando, levadas por questões sentimentais, não fazem o que deveriam: cortar e canalizar os recursos para o futuro (aka limpeza estratégica). Não encerram projectos, não vendem negócios maduros, não desinvestem em áreas sentimentais. Resultado? Estagnação — organizacional e macroeconómica.

O drama da estagnação não nasce da falta de ideias, mas da incapacidade de libertar recursos de actividades cuja rendibilidade futura é baixa.
Empresas que conseguem fazer isto, como a Unilever agora tenta, criam um ciclo virtuoso: mais foco, melhor produtividade, maior retorno.

A venda destas marcas históricas confirma uma mudança estratégica: a Unilever quer libertar capital, talento e foco para as áreas de maior crescimento — beleza, cuidados pessoais e dermatologia. Estas categorias têm margens mais elevadas, ciclos de inovação mais rápidos e maior alinhamento com as tendências globais de "premiumrização" e de bem-estar. Receita para aumentar a produtividade.

Implicação: a empresa está a abandonar negócios de baixo crescimento, com margens comprimidas e menor potencial de escala global. Ou seja, estas marcas podem não ser uma boa aposta para a Unilever do futuro, mas podem ser uma boa aposta para outras empresas com outra escala, outra estratégia e outro ADN; para elas podem ser ouro puro.

Cada euro investido numa categoria madura, como “food spreads”, tem um retorno menor do que o mesmo euro investido em beauty & personal care. Implicação: realocação de capital para segmentos com maior crescimento estrutural e retornos mais previsíveis.

A venda destas marcas, somada ao spin-off da divisão de gelados, representa uma mudança estrutural: a Unilever está a tornar-se menos "food conglomerate" e mais "beauty & wellness powerhouse". Uma redefinição da identidade corporativa ao vivo e a cores diante dos nossos olhos e possível desinvestimento adicional em categorias alimentares não estratégicas.

Trecho retirado de "Unilever could sell off vintage brands" publicado no The Times do passado dia 21 de Novembro.



quarta-feira, novembro 19, 2025

Um pessimista-optimista (parte II)

Tenho escrito aqui sobre a "wicked mess" em que a Inglaterra se encontra. No Domingo passado, na habitual conversa telefónica com a minha irmã, que vive em Inglaterra há cerca de 15 anos e tem uma forte costela Labour — notei nela uma incredulidade quase cansada perante a ausência de um plano por parte do governo.

Eu, que tenho mais nove anos de estrada do que ela, partilhei o que aprendi em 2020, quando vivi um déjà-vu português e andava aflito com a falta de rumo nacional. Foi então que tropecei numa reflexão sobre a Toyota e percebi que não adianta entrar em stress. Disse-lhe:

"Sou um pessimista-optimista. Acredito que enquanto continuarmos assim vamos, como comunidade, enterrar-nos cada vez mais por mais dinheiro que venha da UE para alimentar as elites e o seu património [Moi ici: E sejamos realistas, e o pão e o circo para o povo]. O meu optimismo vem de pensar no day-after... quando a nossa comunidade estiver preparada. Porque não se pode ter razão antes do tempo, ou alterando o que diz Joaquim Aguiar, os eleitores têm sempre razão, mesmo quando não a têm. Quando a nossa comunidade estiver preparada e retirarmos os pesos, vamos poder fazer o que fez a Toyota ou o que fez a Estónia e a Letónia. Sem espertices saloias, mas com trabalho e com verdade."

Pessimista porque uma parte de mim, sem ser leninista, acredita que só batendo na parede a comunidade decide mudar. Até lá não adianta stressar. Optimista, porque acredito que existe sempre uma alternativa, quando se tem força de vontade. Porque sem força de vontade, "It’s hard work to stick around long enough to get lucky". Havendo força de vontade, tem-se tempo para fuçar até encontrar uma alternativa.

Com força de vontade, ganha-se tempo para experimentar, falhar, ajustar e construir algo novo. Importa sublinhar este verbo: construir. Não é encontrar soluções prontas; é deixar emergir, pela experimentação disciplinada ou não, aquilo que tem potencial positivo.

Foi precisamente nesta linha de pensamento que, na segunda-feira à noite,  li o último texto de Roger Martin, "Something from Nothing Leaves Something", talvez um dos melhores deste ano, e este ano tem sido muito bom. E senti que aquilo que ele escreve é, afinal, a confirmação intelectual da intuição que tentei explicar à minha irmã.

Num país de PMEs — e numa comunidade política com recursos escassos — é fácil cair na tentação de pensar que o sucesso exige começar rico. Martin desmonta essa ilusão. Não é a abundância que faz a estratégia; é a clareza. Ter poucos meios não condena ninguém, seja empresa ou país; obriga, isso sim, a fazer o trabalho estratégico que muitos gigantes evitam. Quando não se pode competir em investimento, compete-se em inteligência, criatividade e foco. E esta é exactamente a lógica do meu "optimismo disciplinado": há sempre uma alternativa à espera de ser construída, mesmo quando o presente parece um beco.

A pergunta certa não é "como é que se igualam os grandes?". A pergunta é: o que é que os clientes — ou os cidadãos — ainda não recebem, apesar de todos os recursos já gastos?

Essa pergunta abre espaço para estratégias baratas, porém profundamente diferenciadoras. Martin mostra que há sempre dois caminhos acessíveis: usar melhor os activos que temos debaixo do nariz e criar activos novos que custam pouco, mas que têm valor porque são difíceis de imitar.

A mensagem para as PMEs portuguesas - e, por extensão, para países em fases de bloqueio — é clara: a vantagem não está em ter muito, mas em usar bem o que se tem. Singapura, a Rotman School, Tennis Canada... todos começaram modestamente. O padrão é sempre o mesmo: foco, imaginação e uma estratégia que alinha escolhas difíceis com oportunidades reais.

Para as nossas PMEs, isto significa competir em relevância, não em escala. Procurar os espaços onde os grandes não podem ou não querem entrar. Transformar limitações em foco e foco em vantagem. E perceber que a essência de uma boa estratégia não está no tamanho da organização, mas na qualidade das escolhas.

No fundo, o texto de Roger Martin reforça exactamente o que disse à minha irmã: mesmo quando tudo parece bloqueado, existe sempre uma alternativa — mas ela tem de ser construída, não encontrada. Criatividade é mais barata do que capital; e, usada com propósito, pode valer muito mais.

sexta-feira, novembro 14, 2025

Aproveitar aquilo que faz a diferença

Há dias ouvi uma apresentação de Rory Sutherland onde ele tecia considerações acerca das empresas familiares. 

"When you're a family-owned business, you're focused on your customers. You're not focused on your shareholders."

As empresas familiares tendem a orientar-se mais para a satisfação e lealdade do cliente do que para as métricas financeiras de curto prazo que dominam as empresas cotadas. Isso cria relações mais humanas e de longo prazo com os consumidores. 

"A family-owned business can think of life over multiple time scales... They're not completely fixated on the next quarter."

As empresas familiares planeiam em horizontes temporais mais amplos — pensam em décadas, não em trimestres. Podem investir em reputação, qualidade e inovação sem a pressão constante de apresentar lucros imediatos aos accionistas.

"A customer focus means that you're rooted in the real world. A shareholder focus means you're focused on artificially bad proxy metrics."

Ao focarem-se no cliente, as empresas familiares mantêm-se ligadas à realidade concreta do mercado e das pessoas. As empresas grandes, pelo contrário, baseiam-se em indicadores e métricas financeiras abstractas que muitas vezes distorcem a realidade.

"Customers are increasingly finding dealing with large organizations fundamentally psychopathic... the entire focus is around efficiency, not the quality of a long-term relationship."

As empresas familiares cultivam uma cultura mais empática e relacional, em contraste com a desumanização e o foco exclusivo na eficiência típica das grandes corporações.

Num tempo em que a tecnologia acelera tudo e a procura de eficiência se tornou quase uma obsessão, o factor humano continua a ser o ponto de equilíbrio. Recentrar a atenção no cliente real, nas relações que perduram e na criação de valor que resiste ao tempo pode ser a melhor estratégia para navegar um futuro incerto — e talvez o único antídoto contra a crescente desumanização que tantos já começam a sentir.

Em 2017, em Strategy is Context Sensitive escrevi:

"Acerca da velha mania dos ignorantes teimarem em querer que as PME apliquem as mesmas receitas que as empresas grandes e queridas das revistas de gestão. O que funciona para umas é veneno para as outras."

Recordo também, de 2015, Cuidado com o título.


terça-feira, novembro 11, 2025

Foco, foco, foco.

Há anos que aqui no blogue escrevo sobre as empresas que querem continuar a ser decatlonistas como o Bruce Jenner. Por exemplo, em 2015 escrevi A sua empresa tem cada vez menos espaço para ser um Bruce Jenner, e há dias no outro blogue escrevi "How to increase the economic return on certification? (Part XII)" onde voltei a referir que as emperesas decatlonistas não têm qualquer hipótese contra "salami slicers".

Entretanto, ontem Roger Martin publicou "What has Changed the Most for Strategy". Sublinho:

"Pick a WTP in which you aim to create a matching and powerful HTW. 

Invest in that WTP/HTW combination quickly and aggressively.

If your WTP is too broad and/or your investment is slow or tentative, someone else will be able to out-invest you — and customers will figure that out fast.

And when they do, it is a quick downward spiral for you."

Roger Martin descreve aqui o colapso da estratégia “decatlonista” — empresas que tentam cobrir demasiados “Where to Play” (mercados, produtos, clientes) acabam por não investir o suficiente em nenhum deles.

A empresa especialista, ao contrário, concentra investimento e foco, ganha escala e vence. 

"The path to a logical competitive conclusion is shorter. In 1981, mediocre companies could survive as viable entities for decades.

...

They could then but they can’t now.

If you can’t find a Where-to-Play (WTP) in which you can put in place a How-to-Win (HTW), the clock is ticking fast for your demise."

Num mundo de custos fixos elevados e de descoberta instantânea de valor, as empresas generalistas não têm tempo nem margem. O mercado elimina rapidamente quem não tem uma vantagem clara — exactamente o que acontece às empresas “decatlonistas”, boas em tudo e excelentes em nada. 

"If you are investing energy and capital in activities without an intention of winning, you are fooling yourself. I hear it all the time: Roger, we can't exit that mediocre product line/business unit because our overall sales will shrink. [Moi ici: Eu também e sempre me fez impressão] They foolishly assume that their position in that mediocre business is stable. It isn't. It will be crushed — quicker than ever. And it will continue to bleed investment resources away from product lines/businesses that have a chance of an upward spiral.

Figure out a place to stand - and fight to win. Out-invest your competition. If you can't, you are fooling yourself. If you can, double down and take the fight to your competition."

Voltamos às formigas num piquenique

segunda-feira, novembro 10, 2025

Ver para lá do que se conhece (parte VII)

"Fourteen years after Suzanne Edwards stood on a balcony in Morocco, leant against the side and felt the railing break, she moves her right leg forwards. he shifts weight to her left leg. veating with the effort, and slowly makes a step.
No one would call it a miracle. In this Swiss physiotherapy unit there is a harness suspended from the ceiling, bars to hold on to and a team monitoring her progress. Later she may transfer to a walking frame for short distances. But there is still something miraculous about it.
...
Weeks after experimental surgery, simply by thinking about walking, Edwards walks. She is far from cured but she is also far from what she thought she could do when shewoke up to be told her back had broken."

No, The Times de ontem "I was told I'd never walk again. Now I just think walk' and I do". O artigo descreve o caso de Suzanne Edwards, uma mulher que ficou paralisada após um acidente e que conseguiu voltar a andar graças a uma tecnologia inovadora de implantes neurais ligados à inteligência artificial (IA). O sistema, desenvolvido por Grégoire Courtine e pela neurocirurgiã Jocelyne Bloch no Hospital Universitário de Lausanne (Suíça), cria uma espécie de “ponte digital” entre o cérebro e a medula espinhal: os sinais elétricos associados ao pensamento de “andar” são descodificados por um processador externo e reenviados a um segundo implante na medula, que estimula as pernas a moverem-se.

Embora ainda em fase experimental, este avanço mostra potencial para transformar a vida de pessoas com paralisia e mudar a forma como a sociedade encara a incapacidade permanente.

Recordar: Ver para lá do que se conhece - Parte Iparte II, parte III, parte IVparte V e parte VI.


domingo, novembro 09, 2025

A solução é estratégia, não protecção.

Ontem no JN, em "Escola de Turismo da Guarda abre cursos graças aos estrangeiros", li:

"Como nos outros países, o centro das grandes cidades tem um enorme poder de atração, mas fomentá-lo é contrário ao interesse nacional. Por um lado, significa um esforço financeiro desmesurado para as famílias instalarem um ou mais filhos nas duas maiores cidades; por outro lado, a política de abertura de vagas nas áreas metropolitanas afasta das cidades do Interior potenciais alunos, que são fundamentais para o seu equilíbrio socioeconómico e cultural e para a coesão territorial".

Li com atenção as declarações do presidente do Politécnico da Guarda, Joaquim Brigas, acerca da falta de alunos e do alegado efeito penalizador do aumento de vagas no litoral. A sua preocupação com a coesão territorial é legítima; contudo, discordo profundamente da ideia de que a solução passa por limitar vagas ou por “proteger” artificialmente as instituições do Interior.

As famílias portuguesas sabem muito bem o que é melhor para os seus filhos. Estão dispostas a fazer sacrifícios — financeiros, logísticos e pessoais — para lhes dar acesso às oportunidades que julgam mais adequadas. Não é por acaso que muitos preferem mandar os filhos estudar no Porto ou em Lisboa. Esta escolha não representa desamor pelo Interior, mas sim uma decisão racional: onde acredito que o meu filho terá mais oportunidades, melhores redes, maior exposição e melhores condições para construir o seu futuro?

A resposta política não pode coarctar essa liberdade de escolha. Isso seria caminhar para uma lógica proteccionista que, em vez de resolver o problema, o perpetua.

Quando uma instituição tem dificuldade em atrair alunos, a pergunta certa não é “como limitar a concorrência?”, mas sim “como nos diferenciamos?”. Por favor, volte atrás e leia a frase 5 vezes!

E é aqui que as escolas do Interior devem actuar: com estratégia, não com lamentos.

Em vez de competir por inércia com os grandes centros urbanos, as instituições do Interior podem assumir a sua singularidade como vantagem estratégica.

Por exemplo, será que desenvolver ofertas formativas ligadas ao território e ao seu potencial económico futuro (saúde e envelhecimento activo, energias renováveis, florestas e ordenamento, economia circular, agricultura de precisão, turismo regenerativo, cibersegurança aplicada, economia digital em territórios de baixa densidade) faz sentido?

Apostar numa experiência estudantil diferenciada: alojamento acessível, relação próxima com os docentes, qualidade de vida, natureza, cultura, segurança e comunidade.

Isto não é ingenuidade. É estratégia.

É passar do discurso de “faltam-nos alunos” para “atraímos os que querem algo diferente e melhor para o seu futuro”.

Se as famílias fazem sacrifícios para mandar os filhos para o litoral, não é por capricho — é porque percepcionam valor lá. A missão do Ensino Superior no Interior não é pedir protecção, mas sim construir valor próprio.

O Interior não precisa de quotas. Precisa de ambição.

E o país não ganhará nada em proteger instituições que não se reinventam. Pelo contrário: ganharemos muito se cada escola — no litoral ou no Interior — for desafiada a clarificar a sua proposta de valor, o seu papel no ecossistema regional e a sua contribuição para o futuro do país.

O futuro do Ensino Superior português, como o futuro das regiões, não se constrói por decreto, nem com protecção. Constrói-se com visão, diferenciação e coragem de competir.

E, acima de tudo, com respeito pela liberdade das famílias que, com sacrifício e esperança, procuram o melhor para os seus filhos.

E recuo a 2006 e às formigas num piquenique: Faz sentido continuar a apostar num negócio?

Há que actuar para mudar o jogo, criar um jogo em que os dominantes não tenham vantagem.

Eu começaria por um departamento com mais potencial para obter retorno mais cedo e servir de modelo a outros departamentos. Recordar Esko Kilpi e "onlyness".

sexta-feira, novembro 07, 2025

O futuro não se subsidia — constrói-se.


Ontem no FT uma coluna trazia "AI may fatally wound online advertising model, warns Berners-Lee". O artigo começa assim:

"The multibillion-dollar advertising model that has underpinned the internet economy could "fall apart" due to the rise of generative artificial intelligence, according to the inventor of the World Wide Web.

Speaking at the FT Future of AI Summit in London yesterday, Sir Tim Berners-Lee warned that large language models (LLMs) might eventually replace humans in consuming the internet.

"If web pages are all read by LLMs, then people ask the LLM for the data and the LLM just produces the result, the whole ad-based business model of the web starts to fall apart," he said.

This system threatens the collapse of the decades-long advertising-based model that has led to the likes of Google and Meta becoming multitrillion-dollar businesses on the back of powerful ad networks."

A implicação mais profunda é que o tráfego humano — base do valor publicitário — torna-se irrelevante. É uma ameaça ao célebre; se é de graça, tu és o produto. 

Ao ler as declarações de Tim Berners-Lee e dos restantes participantes no FT Future of AI Summit, impressiona a serenidade com que enfrentam o abalo sísmico que a inteligência artificial está a provocar. Não há negação, nem nostalgia.

Há lucidez pragmática ao estilo Mr Spock: o modelo económico que sustentou a internet durante 25 anos — a publicidade baseada na atenção humana - está a esgotar-se. E há uma pergunta prática: o que vem a seguir e como o criamos?

O contraste com o que se passa em Portugal, a reacção dominante da imprensa tradicional à revolução digital tem sido quase a oposta: esperar protecção em vez de procurar reinvenção.

É o reflexo de uma cultura institucional que encara a mudança tecnológica como uma tragédia que exige indemnização, e não como uma oportunidade de reinvenção.

Enquanto uns, lá fora, se reúnem para imaginar como reconstruir o modelo económico da informação, por cá discute-se como manter vivo um modelo morto com fundos públicos.

O problema é que proteger modelos obsoletos não os torna sustentáveis — apenas atrasa o inevitável. Enquanto se discute a criação de fundos de apoio à imprensa, as grandes mudanças acontecem noutro plano: a IA está a transformar a forma como a informação é criada, distribuída e consumida.

Cada euro gasto a tentar conservar o passado é um euro não investido em experimentar novas formas de credibilidade, de financiamento e de relação com o público.

Talvez o que falta à imprensa portuguesa não seja apoio, mas estratégia: perceber que o seu valor não está em vender notícias, mas em construir confiança num mundo saturado de informação gerada por máquinas. Essa poderia ser a sua vantagem competitiva.

segunda-feira, novembro 03, 2025

Governos e ausência de estratégia (aka clichés)


O The Times de ontem traz um interessante texto de opinião assinado por Daniel Susskind, "My radical budget to get Britain growing: first, end the triple lock".

É uma reflexão sobre o que o Partido Trabalhista britânico, agora no governo, deve fazer no seu próximo orçamento para tirar o Reino Unido da estagnação económica. O autor argumenta que o governo de Keir Starmer precisa de enfrentar escolhas difíceis: se quer crescimento, terá de abandonar políticas que travam a produtividade e aceitar que a prosperidade futura exige reformas dolorosas no Estado social, no sistema fiscal e nas prioridades de despesa.

E depois, aborda um tema que me é muito querido e que o teste de reversão de Roger Martin ajuda a desmascarar: o uso de estratégias da treta, ao optar por aquilo que chamo de catequese, ao tentar conciliar objectivos incompatíveis: crescimento, transição energética, protecção social e disciplina orçamental. 

O autor defende que é tempo de priorizar o crescimento, mesmo que isso implique decisões impopulares. Se o governo não o fizer, o país continuará preso à estagnação e ao declínio. Como não recordar Joaquim Aguiar e as suas críticas à distribuição sem olhar para a criação de riqueza.
"Joaquim Aguiar costuma escrever que não se pode seguir em frente sem primeiro reconhecer os erros do passado. Por isso, ele usa a metáfora das rotundas. O país está numa rotunda há mais de 20 anos, focado na distribuição de riqueza que é gerada por outros povos e que se transforma em dívida para as gerações de escravos no futuro."

Vamos ao texto de Susskind:

""Growth," declared Keir Starmer at the start of 2024, "is the lever that I intend to pull." The trouble with that line is that it makes the task at hand seem too easy. A far better metaphor is a wheel, not a lever. This captures the real, more difficult, choice: whether to steer the economy towards more growth but, at the same time, to accept that also means turning away from other things Labour believes are important.

Until now, the government has been unwilling to make that trade-off. That is what must change in this budget if stagnation is to end. [Moi ici: O governo precisa de fazer escolhas reais, não apenas ajustes técnicos. Governar não é puxar uma alavanca fácil, mas escolher uma direcção, e aceitar os sacrifícios que ela implica. Starmer evita decisões difíceis.]

Labour is introducing new workers' rights that will cost businesses £5 billion a year according to the government's own analysis. But if this budget is serious about growth at all costs, it would delay these reforms - not because they don't matter, but because ending stagnation matters more.

Labour is pursuing a net-zero agenda that is driving up energy bills, decimating traditional industries and will cost the economy a fortune. But this budget should dilute these ambitions not because the climate is unimportant, but because this price is too high given the economic calamity unfolding.

Labour is protecting the pension triple lock, [Moi ici: Esta cena do "triple lock" consegue ser pior do que qualquer coisa feita em Portugal sobre o tema nos últimos 40 anos] which the Office for Budget Responsibility expects to cost £15.5 billion a year by 2030. But if growth is the main goal, Labour would scrap this and use the savings to, for instance, fund tax cuts for small and medium-sized businesses and entrepreneurs - not because the triple lock isn't nice, but because this money could be used in pursuit of prosperity. Labour is failing to reform a welfare system that keeps 25 per cent of working-age people in big cities such as Birmingham, Liverpool and Blackpool on out-of-work benefits. With growth the priority, this system should be overhauled - not to save money, but because it is inefficient to condemn millions of people, full of new ideas, to worklessness.

Labour will not consider a customs union with our biggest trading partner, the EU, despite the fact that Reeves is likely to blame Brexit for the state of Britain. But if growth really is the be all and end all, then this is the moment to set out the intention to revisit that relationship. Putting the British economy first demands it. [Moi ici: Estes 4 exemplos ilustram a incapacidade de fazer trade-offs. Por isso estas políticas actuais contradizem o objectivo de crescimento]

...

This is the challenge that sits at the heart of Britain: a tension between what the economy needs and what Labour allows.

...

The budget must make clear that Labour's titanic ambitions for the state are no longer compatible with how poor we have become.

...

Finally, the budget must be blunt that this is the end of the road. If Labour does not prioritise growth, if it is unwilling to give up other things that it values in its pursuit, then it is likely to end up with little at all.

My fear is that only an external crisis will force Labour to seriously change direction. My hope is that an internal crisis will happen within Labour before that. [Moi ici: Não acredito, os deputados têm ainda mais medo que o medroso Starmer]"

Vamos ao teste de Roger Martin. Em vários pontos o governo tenta evitar escolhas entre opções plausíveis:

  • Crescimento vs. preservar todos os benefícios actuais. O inverso ("crescer e rever benefícios") é plausível → requer escolha; ao evitá-la, não há estratégia. 
  • Crescimento vs. ritmo/desenho do net-zero. O inverso ("ajustar o net-zero para priorizar o crescimento no curto prazo") é plausível → requer escolha; ao evitá-la, não há estratégia.
  • Crescimento vs. manter o triple lock. O inverso ("rever o triple lock para libertar investimento") é plausível → requer escolha; ao evitá-la, não há estratégia.
  • Estabilidade pós-Brexit vs. reaproximação económica à UE. O inverso ("revisitar a relação com a UE") é plausível → requer escolha; ao evitá-la, não há estratégia.
Se o inverso de uma afirmação é absurdo, não estamos perante uma estratégia — temos uma banalidade, um cliché, enfim treta. Estratégia implica escolher entre opções válidas; o inverso pode fazer sentido para alguém noutro contexto.

domingo, novembro 02, 2025

A melhoria não é o problema: o que falta à ISO 9001 (parte II)

Parte I gerou uma troca de ideias. Um leitor comentou, com razão, que, pelo que eu escrevia, parecia decorrer que os auditores deveriam ter formação em gestão de empresas para compreender a estratégia e os projectos de melhoria.


É um ponto interessante, mas não creio que seja assim. Essa formação extra não faria mal, é certo, mas o papel do auditor não é avaliar se a estratégia é boa ou má. O apetite pelo risco e as escolhas estratégicas pertencem à gestão. O papel do auditor é outro: avaliar se a política da qualidade está alinhada com a orientação estratégica da organização, se os objectivos traduzem essa política e se os projectos de melhoria fazem sentido para alcançá-los.

O papel do auditor é verificar a coerência, não julgar escolhas.
O auditor não é um consultor nem um gestor-sombra. O seu trabalho não é discutir se a organização devia apostar noutro mercado ou adoptar outro posicionamento.

O seu papel é confirmar se o sistema de gestão tem lógica interna:
  • Se a política expressa uma direcção clara e coerente com o que a empresa declara ser a sua orientação; 
  • Se os objectivos traduzem essa direcção em resultados concretos e mensuráveis; e
  • Se os projectos de melhoria estão efectivamente ligados a esses objectivos. (Já agora, não ajuda nada que a ISO 9001 não considere obrigatório ter estes planos por escrito)
Quando o auditor avalia esta coerência, está a cumprir a função mais nobre da auditoria: verificar se a organização faz o que diz e se o que diz faz sentido à luz do seu rumo.

Uma ferramenta simples ajuda muito nesta tarefa: o teste de reversão de Roger Martin.
A ideia é esta — uma boa política implica uma escolha. E toda a escolha implica um “não”.
O auditor pode testá-lo perguntando: “O inverso desta política também poderia ser verdade?”
Se sim, há uma escolha real. 
Se não, a política é genérica e não orienta nada.

Durante a auditoria, em vez de pedir apenas o texto da política, o auditor pode seguir três perguntas simples:
  1. A política identifica uma direcção concreta? (ou é uma lista de boas intenções?) 
  2. Os objectivos derivam dessa direcção? (ou foram definidos porque "a norma pede"?) 
  3. Os projectos de melhoria ajudam a atingir esses objectivos? (ou são acções dispersas?)
A auditoria da qualidade não deve avaliar se a estratégia é acertada, mas sim se o sistema a traduz com coerência. O auditor é, antes de tudo, o guardião dessa coerência interna entre propósito, objectivos e melhoria. Quando cumpre bem esse papel, a auditoria deixa de ser um ritual de conformidade e transforma-se num exercício de inteligência organizacional.

sábado, novembro 01, 2025

A melhoria não é o problema: o que falta à ISO 9001


Christopher Paris escreveu recentemente que a introdução do conceito de "improvement" na ISO 9001:2000 ajudou a estragar a norma, em "Why the Addition of "Improvement" Helped Ruin ISO 9001". 


A sua tese é simples: até então, a ISO 9001 servia para conferir confiança aos clientes de que os fornecedores conseguiam cumprir consistentemente os requisitos. Ao introduzir a melhoria contínua, os autores criaram algo difícil de auditar, subjectivo, que retirou clareza e desviou a norma do seu propósito inicial.

Concordo que a norma perdeu clareza, mas não acredito que o problema esteja na ideia de melhoria. O problema está noutro ponto: o mundo mudou e a excelência operacional deixou de ser suficiente para garantir o sucesso do negócio. A norma não tem sabido salientar este ponto com a devida ênfase, e isso percebe-se muito bem na forma como a política da qualidade é escrita, comunicada e frequentemente auditada, como um texto genérico, desligado da verdadeira orientação estratégica da organização.

Nos anos 80 e 90, falar de qualidade era falar de Garantia da Qualidade. O foco estava em garantir, objectivamente, que o fornecedor produzia peças conformes. O jogo competitivo era claro: reduzir defeitos, aumentar eficiência, controlar custos. Num mundo em que a excelência operacional fazia a diferença, a certificação ISO 9001 era uma poderosa credencial.

Com a ISO 9001:2000, o conceito evoluiu para o de Gestão da Qualidade. A definição de sistema de gestão é explícita: trata-se de “estabelecer políticas e objectivos e trabalhar para alcançar esses objectivos”. Isto deslocou o foco do presente (o produto ou serviço está OK) para o futuro — a organização deve gerir-se como um sistema, considerar o contexto, antecipar riscos e planear mudanças.

Convém também recordar a origem da ISO 9001. A norma foi criada não para auditorias de terceira parte, mas para que os clientes pudessem auditar os seus fornecedores e, dessa forma, assegurar-se da conformidade dos produtos adquiridos. A certificação por entidades independentes só se generalizou mais tarde. Essa génese explica muito do seu desenho inicial: verificar se o fornecedor era capaz de atender aos requisitos do cliente, ponto final. O foco era o controlo, não a estratégia.

Essa herança ainda hoje se sente. Veja-se a cláusula 8.2, que trata da determinação de requisitos relativos a produtos e serviços. O texto é praticamente mudo sobre algo decisivo numa lógica de gestão: a necessidade de escolher clientes-alvo, de procurar e conquistar os clientes certos. A norma continua presa à ideia de “cumprir os requisitos do cliente”, como se todos os clientes fossem iguais e como se não houvesse escolhas estratégicas a fazer.

Já em 1996, Michael Porter alertava para o perigo de confundir a eficiência operacional com a estratégia. Os japoneses tinham revolucionado a gestão com qualidade total, kaizen e normalização, mas ao competir todos com os mesmos métodos, ficaram presos numa “armadilha de eficiência” — todos iguais, todos competindo pelo preço.

Nos meus textos sobre a “cristalização” e a mudança de paradigma que levou ao fim da minha marca Redsigma, desenvolvi esta ideia: houve uma altura em que reduzir a variabilidade e apostar na normalização bastava para diferenciar. Mas isso esgotou-se. Quando o mundo foi invadido por produtos chineses a preços muito competitivos, a excelência operacional não foi suficiente para assegurar o sucesso do negócio. Agora, o sucesso não vem da uniformidade, mas da capacidade de criar variedade, diferenciação e valor.

É aqui que a ISO 9001 falha em ser explícita. Ao falar da política da qualidade, dos objectivos e da melhoria, a norma não sublinha suficientemente que a qualidade deve ser entendida como criação de valor no futuro, e não apenas como garantia de eficiência no presente.

Na prática, isto traduz-se em políticas de qualidade redigidas de forma genérica, que não expressam escolhas estratégicas, e em auditorias que verificam a conformidade documental, mas não questionam se a política realmente orienta a organização para o futuro.

O que está em causa não é retirar o conceito de melhoria da norma. Pelo contrário: a melhoria é essencial, mas deve ser entendida como a ponte entre a eficiência operacional e a diferenciação estratégica.

A norma deveria reforçar que:
  • A Garantia da Qualidade continua a ser necessária — garantir os requisitos vigentes é a base.
  • A Gestão da Qualidade só tem sentido se for usada para preparar a organização para o futuro — ligar o contexto, os riscos, as oportunidades e as escolhas estratégicas.
  • A política da qualidade deve deixar de ser uma formalidade e passar a ser a tradução clara da direcção da empresa, onde se vê como pretende criar valor e diferenciar-se.
A ISO 9001 não se perdeu por ter introduzido a melhoria. Perdeu relevância porque não tem sabido ligar-se de forma clara à realidade de que a excelência operacional, por si só, já não garante sucesso. O desafio hoje não é apenas fazer bem o que todos fazem, mas escolher onde ser diferente, onde criar valor, onde apostar recursos.

Uma boa norma de gestão da qualidade deve ajudar as organizações a percorrer esse caminho. Se não o fizer, ficará condenada a um papel cada vez mais burocrático, longe das decisões que realmente definem o futuro das empresas.

Uma das razões para recentemente ter lançado este curso Turn Your Quality Policy Into a Strategic Compass.

sexta-feira, outubro 31, 2025

Estratégia trocada em miúdos


O conceito de estratégia numa linguagem comum.

No artigo que escrevi (Parte XII) (original de 2015 aqui), tentei mostrar a importância de distinguir quais os processos que merecem excelência e quais os que apenas precisam de fiabilidade. Usei a metáfora do decatlonista: um atleta completo, capaz de competir com outros generalistas, mas que perde inevitavelmente quando enfrenta especialistas — os chamados salami slicers. O mesmo acontece com empresas que tentam ser boas em tudo sem decidir onde realmente têm de brilhar.

É nesse ponto que as palavras de Joe Rogan ressoam. Ele explica que não é possível ser o melhor em todas as frentes ao mesmo tempo. Para alcançar o topo, é preciso aceitar limites, escolher onde colocar foco e energia e reconhecer que esse foco transforma não só o desempenho, mas também a forma como nos relacionamos com os outros e com o mundo.


A estratégia, como Michael Porter nos recorda, é sobre escolhas e compromissos.
  • Não se pode ser o melhor em tudo.
  • Hiperfocar numa área acarreta custos noutras.
  • A arte está em decidir conscientemente: o que priorizar e o que deixar para trás?
Para as empresas — e também para as pessoas — o mesmo princípio aplica-se. O sucesso não vem de
fazer mais, mas de escolher deliberadamente onde se quer ser excelente e aceitar os sacrifícios que
acompanham essa escolha.

Onde é que a sua empresa escolheu ser excelente — e o que decidiu não seguir? 

quinta-feira, outubro 30, 2025

Uma advertência

Nos primeiros anos da década de 90 a revista The Economist publicou um artigo, que tenho algures guardado, com uma tabela que ilustrava a competição interna, doméstica, no Japão dessa altura. Uma concorrência impiedosa. Os números impressionavam. Por exemplo, mais de 20 marcas diferentes a produzir pneus e a concorrer entre si de forma impiedosa.

Em Julho recordei um texto de Porter de 1996 sobre as empresas japonesas e a brutal competição entre elas. Agora já quase não se fala nessa palavra, mas era o tempo dos keiretsu que forneciam apoio financeiro e partilha de cadeias de distribuição.

Entretanto, nos últimos tempos uma palavra tem aparecido muito nos jornais internacionais, "involution".

Por exemplo, no WSJ de 20 de Outubro, "China Grapples With 'Involution' Choking Economy".
 
O artigo descreve como a economia chinesa enfrenta um problema profundo identificado como “involution” – uma espiral de competição interna tão intensa que destrói lucros, pressiona trabalhadores, gera deflação e ameaça o crescimento económico sustentável. O excesso de produção e a falta de procura conduzem a guerras de preços e a queda das margens. Apesar dos avanços tecnológicos e da aposta em indústrias do futuro, a China vê-se presa a um ciclo de sobrecapacidade, exportações agressivas e fragilidade do consumo interno, num contexto de crescimento lento e desemprego crescente.

No FT do passado dia 24 de Outubro, "For China, involution' is a blessing as well as a curse". Que pode ser resumido desta forma:
  • O sistema político chinês recompensa líderes regionais pela industrialização e pelo crescimento económico. -> 
  • Isto cria uma competição feroz entre as províncias para lançar novos projectos industriais. ->
  • Cada região tenta superar as demais em investimento, produção e inovação. Resultado: investimentos duplicados em sectores “da moda” (IA, semicondutores, veículos elétricos, painéis solares). ->
  • Consequências imediatas da involution - Sobrecapacidade industrial -> fábricas subutilizadas, excesso de produção. -> Queda de margens -> empresas vendem a preços muito baixos para sobreviver. -> Preços caem pela saturação da oferta. -> Desperdício de recursos -> investimentos redundantes e não produtivos.
  • Efeitos positivos inesperados (“bênção”). A mesma dinâmica cria campeões nacionais altamente competitivos. Empresas aprendem a escalar rapidamente, a cortar custos e a sobreviver com margens mínimas. Estas empresas tornam-se superprodutivas e agressivas nos mercados globais.
  • Efeitos negativos internos (“maldição”). A economia doméstica fica presa a ciclos de excesso de capacidade e de margens apertadas. A instabilidade económica cresce, pois muitos investimentos não geram retornos sustentáveis.
Resultado dual
  • Para dentro da China: desperdício, excesso, pressão deflacionária.
  • Para fora: supremacia em sectores estratégicos (painéis solares, baterias, veículos elétricos, semicondutores, etc.), o que transforma o glut interno em poder global.
No NYT do passado dia 24 de Setembro, "A downside to China's economic fix":
"Competition in China is often far more cutthroat than in the United States. America has a handful of carmakers; China has more than 100 electric vehicle makers struggling for market share. China has so many solar panel makers that they produce 50 percent more than global demand. About 100 Chinese lithium battery producers churn out 25 percent more batteries than anyone wants to buy.
This forces Chinese manufacturers to innovate, but it also leads to price wars, losses and bad debt — and that's becoming a problem.
China is heading toward deflation, the often catastrophic downward spiral of prices that sank Japan in the 1990s. Its leaders are blaming a culprit they call "involution", a term that has come to mean reckless domestic competition. They want to rein it in by browbeating companies into keeping prices steady and instructing local governments to scale back subsidies. It won't work. At best, those are temporary fixes for China's more fundamental problem. Its economy relies so heavily on investment for growth, rather than consumer spending, that it produces enormous surpluses that wreck profits at home and provoke trade wars abroad."
Há um termo que costumo usar aqui no blogue, "crescimento canceroso" (BTW, uma terminologia que vai ser proíbida na doente Espanha). 

No fundo, a involution é um espelho que a China nos mostra hoje. É uma advertência sobre os riscos de um crescimento baseado apenas na capacidade de produzir mais. A alternativa não está em produzir menos, mas em produzir melhor: criar valor reconhecido pelos clientes, investir em inovação significativa e a cultivar mercados que premeiem a qualidade. Essa é a diferença entre ser arrastado pela espiral da competição interna ou subir na escala do valor — e transformar excesso em verdadeira prosperidade.