Mostrar mensagens com a etiqueta roger martin. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta roger martin. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, novembro 26, 2025

Tem um Frankenstein?

 Há tempos, usei esta imagem:


E outra parecida, para promover umas sessões de coaching sobre sistemas de gestão. Na "landing page" escrevi:
"Procedures written years ago — by people who've already left.
Too much paperwork nobody reads.
Too little connection between what’s written and what’s done."
Era — e continua a ser — o retrato fiel de muitas organizações.

Os procedimentos foram escritos aquando da implementação inicial do Sistema de Gestão da Qualidade: uma espécie de "instalação 1.0". O tempo passou, o contexto mudou, as pessoas que conheciam o sistema saíram, e aquilo que era claro e útil começou a encher-se de pequenas camadas: anexos, remendos, excepções, atalhos, práticas antigas que ninguém usa, mas que continuam lá, fossilizadas.
"Layering over, not uninstalling."
Acrescenta-se. Nunca se remove. Até que, imperceptivelmente, o sistema transforma-se num monstro: pesado, incoerente, difícil de seguir, impossível de explicar.

A imagem do Frankenstein é perfeita exactamente por isto: cada parte foi, em algum momento, adicionada com a melhor das intenções. Mas o resultado final? Uma criatura desajeitada, lenta, disforme e incapaz de cumprir o papel para o qual foi criada.

A coincidência que não é coincidência. Na passada segunda-feira, Roger Martin publicou “Revisiting Management Systems – The Nervous System of Strategy”.

E é curioso como o seu argumento é exactamente o que tenho visto e escrito ao longo dos anos — mas dito com a clareza conceptual que só ele tem. Martin explica que os sistemas de gestão, quando não são mantidos, acumulam camadas — regras, procedimentos, políticas e artefactos que já não se encaixam entre si:
“Management systems tend to accumulate over time like barnacles on the hull of a ship.”
Barnacles. Cracas presas ao casco de um navio.
E tal como as cracas tornam o barco mais lento, instável e ineficiente, os sistemas de gestão cobertos de resíduos do passado transformam-se em máquinas de fricção. Não ajudam — atrapalham.
O resultado?

Desvio estratégico. Lentidão. Capacidade de execução reduzida. E uma sensação difusa de que a organização está sempre atrasada, sempre presa, sempre a entrar em reuniões para discutir o que "já devia estar a funcionar".

Martin resume numa frase aquilo que qualquer consultor, auditor ou gestor sente todos os dias:
"In this way, if the WTP/HTW choice is the heart of strategy, then MHC are the muscles and EMS its nervous system — the network of signals, incentives, and feedback loops that translate strategic intent into coherent, day-to-day action."
Ou seja: O sistema nervoso tem de fazer com que os músculos trabalhem ao serviço do coração.

Traduzido para a realidade das organizações:
  • O sistema tem de reflectir a realidade, não uma ficção confortável.
  • O sistema tem de orientar as decisões, não de as bloquear em nome de uma conformidade bacoca.
  • O sistema tem de simplificar a acção, não de adicionar camadas de complexidade.
  • O sistema tem de ligar a execução ao que realmente interessa — a estratégia, o propósito, a criação de valor.
Um SGQ que não faz isto é apenas papel. Papel morto. Papel que assusta, se arrasta e olha para nós com aquele ar de Frankenstein institucional.

O que Martin chama “barnacles”, eu vejo todos os dias como:
  • procedimentos com 20 páginas quando bastariam 2; 
  • instruções escritas há 10 anos por pessoas que já nem lembramos;
  • práticas que mudaram no chão de fábrica mas continuam no papel;
  • auditorias internas feitas como checklists automáticas;
  • equipas que já não acreditam no sistema porque o sistema já não acredita nelas.
No fundo, tanto Martin como eu estamos a dizer a mesma coisa: Um sistema de gestão deve ser vivo. Respirar.
Atualizar-se. Acompanhar a mudança.
Ser uma ferramenta de clareza — nunca de confusão.
E se isso não está a acontecer?
Então não tem um sistema de gestão.
Tem um Frankenstein.

quarta-feira, novembro 19, 2025

Um pessimista-optimista (parte II)

Tenho escrito aqui sobre a "wicked mess" em que a Inglaterra se encontra. No Domingo passado, na habitual conversa telefónica com a minha irmã, que vive em Inglaterra há cerca de 15 anos e tem uma forte costela Labour — notei nela uma incredulidade quase cansada perante a ausência de um plano por parte do governo.

Eu, que tenho mais nove anos de estrada do que ela, partilhei o que aprendi em 2020, quando vivi um déjà-vu português e andava aflito com a falta de rumo nacional. Foi então que tropecei numa reflexão sobre a Toyota e percebi que não adianta entrar em stress. Disse-lhe:

"Sou um pessimista-optimista. Acredito que enquanto continuarmos assim vamos, como comunidade, enterrar-nos cada vez mais por mais dinheiro que venha da UE para alimentar as elites e o seu património [Moi ici: E sejamos realistas, e o pão e o circo para o povo]. O meu optimismo vem de pensar no day-after... quando a nossa comunidade estiver preparada. Porque não se pode ter razão antes do tempo, ou alterando o que diz Joaquim Aguiar, os eleitores têm sempre razão, mesmo quando não a têm. Quando a nossa comunidade estiver preparada e retirarmos os pesos, vamos poder fazer o que fez a Toyota ou o que fez a Estónia e a Letónia. Sem espertices saloias, mas com trabalho e com verdade."

Pessimista porque uma parte de mim, sem ser leninista, acredita que só batendo na parede a comunidade decide mudar. Até lá não adianta stressar. Optimista, porque acredito que existe sempre uma alternativa, quando se tem força de vontade. Porque sem força de vontade, "It’s hard work to stick around long enough to get lucky". Havendo força de vontade, tem-se tempo para fuçar até encontrar uma alternativa.

Com força de vontade, ganha-se tempo para experimentar, falhar, ajustar e construir algo novo. Importa sublinhar este verbo: construir. Não é encontrar soluções prontas; é deixar emergir, pela experimentação disciplinada ou não, aquilo que tem potencial positivo.

Foi precisamente nesta linha de pensamento que, na segunda-feira à noite,  li o último texto de Roger Martin, "Something from Nothing Leaves Something", talvez um dos melhores deste ano, e este ano tem sido muito bom. E senti que aquilo que ele escreve é, afinal, a confirmação intelectual da intuição que tentei explicar à minha irmã.

Num país de PMEs — e numa comunidade política com recursos escassos — é fácil cair na tentação de pensar que o sucesso exige começar rico. Martin desmonta essa ilusão. Não é a abundância que faz a estratégia; é a clareza. Ter poucos meios não condena ninguém, seja empresa ou país; obriga, isso sim, a fazer o trabalho estratégico que muitos gigantes evitam. Quando não se pode competir em investimento, compete-se em inteligência, criatividade e foco. E esta é exactamente a lógica do meu "optimismo disciplinado": há sempre uma alternativa à espera de ser construída, mesmo quando o presente parece um beco.

A pergunta certa não é "como é que se igualam os grandes?". A pergunta é: o que é que os clientes — ou os cidadãos — ainda não recebem, apesar de todos os recursos já gastos?

Essa pergunta abre espaço para estratégias baratas, porém profundamente diferenciadoras. Martin mostra que há sempre dois caminhos acessíveis: usar melhor os activos que temos debaixo do nariz e criar activos novos que custam pouco, mas que têm valor porque são difíceis de imitar.

A mensagem para as PMEs portuguesas - e, por extensão, para países em fases de bloqueio — é clara: a vantagem não está em ter muito, mas em usar bem o que se tem. Singapura, a Rotman School, Tennis Canada... todos começaram modestamente. O padrão é sempre o mesmo: foco, imaginação e uma estratégia que alinha escolhas difíceis com oportunidades reais.

Para as nossas PMEs, isto significa competir em relevância, não em escala. Procurar os espaços onde os grandes não podem ou não querem entrar. Transformar limitações em foco e foco em vantagem. E perceber que a essência de uma boa estratégia não está no tamanho da organização, mas na qualidade das escolhas.

No fundo, o texto de Roger Martin reforça exactamente o que disse à minha irmã: mesmo quando tudo parece bloqueado, existe sempre uma alternativa — mas ela tem de ser construída, não encontrada. Criatividade é mais barata do que capital; e, usada com propósito, pode valer muito mais.

terça-feira, novembro 11, 2025

Foco, foco, foco.

Há anos que aqui no blogue escrevo sobre as empresas que querem continuar a ser decatlonistas como o Bruce Jenner. Por exemplo, em 2015 escrevi A sua empresa tem cada vez menos espaço para ser um Bruce Jenner, e há dias no outro blogue escrevi "How to increase the economic return on certification? (Part XII)" onde voltei a referir que as emperesas decatlonistas não têm qualquer hipótese contra "salami slicers".

Entretanto, ontem Roger Martin publicou "What has Changed the Most for Strategy". Sublinho:

"Pick a WTP in which you aim to create a matching and powerful HTW. 

Invest in that WTP/HTW combination quickly and aggressively.

If your WTP is too broad and/or your investment is slow or tentative, someone else will be able to out-invest you — and customers will figure that out fast.

And when they do, it is a quick downward spiral for you."

Roger Martin descreve aqui o colapso da estratégia “decatlonista” — empresas que tentam cobrir demasiados “Where to Play” (mercados, produtos, clientes) acabam por não investir o suficiente em nenhum deles.

A empresa especialista, ao contrário, concentra investimento e foco, ganha escala e vence. 

"The path to a logical competitive conclusion is shorter. In 1981, mediocre companies could survive as viable entities for decades.

...

They could then but they can’t now.

If you can’t find a Where-to-Play (WTP) in which you can put in place a How-to-Win (HTW), the clock is ticking fast for your demise."

Num mundo de custos fixos elevados e de descoberta instantânea de valor, as empresas generalistas não têm tempo nem margem. O mercado elimina rapidamente quem não tem uma vantagem clara — exactamente o que acontece às empresas “decatlonistas”, boas em tudo e excelentes em nada. 

"If you are investing energy and capital in activities without an intention of winning, you are fooling yourself. I hear it all the time: Roger, we can't exit that mediocre product line/business unit because our overall sales will shrink. [Moi ici: Eu também e sempre me fez impressão] They foolishly assume that their position in that mediocre business is stable. It isn't. It will be crushed — quicker than ever. And it will continue to bleed investment resources away from product lines/businesses that have a chance of an upward spiral.

Figure out a place to stand - and fight to win. Out-invest your competition. If you can't, you are fooling yourself. If you can, double down and take the fight to your competition."

Voltamos às formigas num piquenique

sexta-feira, outubro 24, 2025

IA: Entre o que é e o que ainda não é

O WSJ de ontem trazia o artigo "AI Destroys the Old Learning Curve".

Quando li o título pensei que era sobre um tema que me tem preocupado. A IA é fantástica para alguém como eu com mais de 30 anos de experiência profissional e que a pode usar, e avaliar criticamente os seus resultados com base na experiência. No entanto, fico a pensar nos jovens que perdem a oportunidade de iniciar uma experiencia profissional que os obrigue a tarimbar na busca de informação, e lhes dê espírito crítico para avaliar o que lhes é respondido pela IA.

O artigo argumenta que a inteligência artificial está a reescrever a forma como as empresas aprendem e melhoram. Tradicionalmente, a Lei de Wright mostrava que os custos caíam previsivelmente cada vez que a produção duplicava, devido à curva de aprendizagem. A IA acelera este processo ao permitir simulações instantâneas e massivas, tornando obsoleta a ideia de aprendizagem progressiva. Isso gera uma transformação profunda: cadeias de fornecimento mais inteligentes, ciclos de inovação mais rápidos e um ambiente em que empresas que não se adaptarem desaparecerão.

Assim que acabei de ler o artigo a minha pergunta foi esta: Mas será que a IA consegue realmente imaginar o que não existe?

Julgo que é a nuance fundamental do argumento de Roger Martin que abordei em "Imaginar possibilidades"

A IA não imagina, de facto, no sentido humano. Ela não projecta possibilidades a partir de experiências vividas, valores ou intuição. O que faz é gerar resultados recombinando enormes quantidades de dados passados ​​a uma velocidade e escala extraordinárias. É por isso que a IA pode simular milhões de cenários em segundos — mas ainda está ligada aos padrões do que já existe nos dados.

Portanto:

  • A IA destrói a Lei de Wright (como no artigo do WSJ) porque nos permite encurtar a experiência. Em vez de construir 1000 aviões e aprender ao longo do caminho, pode simular 1000 falhas antes de produzir um único protótipo. Isto é revolucionário.
  • Mas a IA não "imagina" verdadeiramente o que nunca existiu. Ela pode extrapolar, remisturar e optimizar dentro de espaços conhecidos. A imaginação humana, por outro lado, pode saltar para o desconhecido — vislumbrar futuros ainda não contidos nos dados.

É exactamente aqui que entra Roger Martin: defende que a educação empresarial deve preparar os líderes para trabalhar num mundo de possibilidades, e não apenas no mundo das coisas reais. A IA é um acelerador no mundo das coisas reais — mas são os humanos que devem definir qual o futuro possível que queremos perseguir e, depois, usar a IA como ferramenta para o explorar e testar.

Por outras palavras:

  • A IA faz colapsar a curva de aprendizagem no mundo do que é.
  • Os humanos ainda são necessários para imaginar o que ainda não é.


Isto faz-me lembrar "Num mundo sem patentes... tudo é acelerado"

quarta-feira, outubro 22, 2025

Imaginar possibilidades

Na passada Sexta-feira almocei com o parceiro das conversas oxigenadoras. Um dos temas de conversa deu origem a uma estória que ele me contou.

Em 2021, a Ingersoll Rand decidiu vender a maior parte da sua divisão High Pressure Solutions (HPS), dedicada a bombas e sistemas de alta pressão, sobretudo utilizados no upstream da indústria do petróleo e gás. A empresa justificou a decisão com a elevada volatilidade desse mercado e a intenção de se concentrar em áreas industriais mais estáveis e orientadas para a sustentabilidade. Assim, transferiu a maioria do capital para o fundo American Industrial Partners (AIP), mantendo apenas uma participação minoritária. O meu parceiro acrescentou que uma das razões para a venda da divisão pela corporação assentava na ideia de que o negócio estava parado e as margens teriam de encolher com o aumento da concorrência.

Pouco depois da operação, a HPS ganhou uma nova identidade: passou a chamar-se GD Energy Products (GDEP). Sob nova gestão e com maior liberdade estratégica, a empresa começou a procurar diversificar o seu portefólio e alargar o âmbito de aplicação da sua tecnologia de bombas de alta pressão.

Se antes o negócio estava quase exclusivamente ligado ao fracking e à exploração de hidrocarbonetos, rapidamente surgiram novos caminhos. A GDEP lançou linhas específicas para Horizontal Directional Drilling (HDD), um mercado ligado à construção de infraestruturas críticas, como túneis sob rios ou estradas, instalação de condutas de água e saneamento, redes de fibra óptica e pipelines. Estas aplicações demonstraram que a tecnologia, longe de estar confinada ao marasmo de um único sector, tinha potencial para responder a desafios em diferentes indústrias.

Além disso, a GDEP continuou a inovar no seu segmento original, apresentando módulos de perfuração de alta pressão com melhorias em termos de desempenho, manutenção e segurança. Assim, reforçou a posição num mercado ainda exigente, mas ao mesmo tempo ganhou espaço em áreas com perspectivas de crescimento sustentado.

Em suma, uma unidade de negócio que parecia estar limitada a um sector em declínio encontrou, com um novo posicionamento, novas oportunidades de crescimento e relevância. A transformação da antiga divisão HPS em GDEP tornou-se um exemplo de como a mesma base tecnológica pode ser revalorizada quando aplicada em novos contextos.

Entretanto, na Segunda-feira de tarde Roger Martin publicou "The Future[s] of Business Education"

"Hence, when we use data analysis to tell us what to do, we are implicitly assuming that the future is identical to the past. 
...
Consumers change, competitors change, technology changes, regulations change, and so on. The future is routinely different than the past.
...
Businesspeople live in a world in which the future is routinely different than the past. But they are educated — and universally so as demonstrated by my audience participation — to use methods appropriate only for a world in which the future is identical to the past." [Moi ici: Roger Martin sublinha que todos os dados estatísticos vêm do passado. Usá-los para decidir o futuro implica assumir que o futuro será idêntico ao passado — um erro grave porque, como Aristóteles distinguia, os negócios estão no domínio do que "pode ser diferente do que é". A Ingersoll Rand (IR) baseou a decisão de vender a divisão HPS na leitura dos dados do passado (volatilidade do upstream, procura em queda, risco de comoditização). Mas o futuro não foi idêntico ao passado: surgiram novas aplicações (HDD/infraestruturas) e a divisão ganhou outra vitalidade.]

"He [Moi ici: Aristóteles] made a critical distinction between two parts of the world. In one part, things cannot be other than they are. For example, anywhere on the earth’s surface, gravity has always and will always cause objects to accelerate toward the ground at 32 feet/second2 — because when it comes to gravity, things cannot be other than they are. But when it comes to smartphones, there were zero in the world in 1999 and probably (the estimates are all over the place) over 7 billion now. Smartphones exist in the part of the world where things can be other than they are. That world changed dramatically with the introduction of the BlackBerry in 2000 and has changed pretty much every year since." [Moi ici: Roger Martin lembra que quase tudo no mundo dos negócios pode ser diferente amanhã (novos produtos, novas aplicações, novas tecnologias, novos regulamentos). A história da HPS mostra isso: de um negócio aparentemente limitado a fracking, passou a servir obras civis e utilities com bombas de alta pressão para HDD, algo fora do radar da IR na altura da venda. O negócio estava no domínio do “can be otherwise”, mas foi tratado como se fosse do “cannot be otherwise”.]


Roger Martin alerta que os gestores educados apenas como “tecnocratas de dados” são limitados. Precisam de ser “arquitectos de possibilidades”. O caso da IR é um exemplo vivo para os seus argumentos: um gestor focado em dados do passado teria vendido; um gestor aberto a imaginar novas aplicações teria talvez investido e reposicionado.

Em resumo: a história da IR encaixa quase como um case study vivo para o texto de Roger Martin. Demonstra o que acontece quando se toma decisões estratégicas como se o futuro fosse uma continuação linear do passado — e como quem aposta em imaginar possibilidades pode capturar valor inesperado.

Recordar Popper e “Of Clouds and Clocks”


segunda-feira, outubro 20, 2025

O valor como arma contra a comoditização


Um dos postais mais importantes para as PME que escrevi, ao longo dos mais de 21 anos deste blogue,  é este, "Pregarás o Evangelho do Valor".

Nele encontramos este gráfico:

Há sempre duas formas de se tentar ganhar mais dinheiro:
  • Vender mais barato para atrair clientes.
  • Vender pelo mesmo preço ou até mais caro, mas oferecer mais valor que os clientes reconhecem.
Este gráfico mostra o que acontece em cada caso.
  • Se baixarmos o preço, parece que vamos vender mais. Mas atenção: para manter o mesmo lucro, precisamos de vender muito mais. Por exemplo, se cortarmos o preço em 20%, podemos ter de duplicar as vendas para não perder dinheiro. Isso é quase impossível para muitas pequenas empresas (não há máquinas, nem pessoas, nem mercado suficiente para isso).
  • Já quando aumentamos o preço, mesmo que percamos alguns clientes, o lucro pode ser o mesmo ou até maior. Porquê? Porque não precisamos de vender tanto e ganhamos mais por cada venda.
O gráfico explica que as PME deviam preocupar-se menos em cortar preços ou apenas em reduzir custos e mais em criar valor para o cliente. Se o cliente sentir que o produto ou serviço vale o preço, vai continuar a comprar, mesmo que seja um pouco mais caro.

Não é sempre no preço mais baixo que se ganha. Muitas vezes, o segredo está em oferecer valor, para que os clientes aceitem pagar mais. 

O preço baixo pode dar clientes, mas é o valor percebido que dá lucro.

Recentemente, descobri através de Daniel Priestley estes outros números que vêm reforçar o argumento:

Ora, isto liga-se a um fenómeno mais amplo, a polarização do mercado. Ainda me lembro do momento em que li “The vanishing middle market”. Está quase a fazer 20 anos. Onde descobri o fenómeno do market polarization.

A "market polarization" acontece quando o mercado se divide em dois extremos: por um lado, cresce a procura por produtos e serviços "premium" (de maior qualidade e preço mais elevado) e, por outro, por ofertas "low cost" ou “no-frills” (sem extras, só o essencial e barato). O que fica a perder são os produtos da gama média, que vão desaparecendo porque já não atraem clientes nem pelo preço nem pelo valor acrescentado.

Esta, talvez demasiado longa, introdução serve para contextualizar um artigo publicado no passado Sábado pelo jorrnal The Times, "Strategy Win For United And Delta":
"Airlines in the United States seem to be separating into two groups. Delta Air Lines and United Airlines make lots of money. And then there's everybody else.
Those two airlines have pulled ahead of the pack in recent years after making a few big bets. They expanded loyalty programs and leaned into selling more first- and business-class seats. And they operate lots of international flights. 
That has paid off handsomely. Delta and United have generated most of the industry's profits since 2022. And some experts believe their lead is only expanding.
...
Of course, no airline is unassailable, and the industry is rife with companies that went from roaring success to penury. [Moi ici: Fica o aviso à la Beinhocker,  Sim, as estratégias são como os iogurtes" têm um prazo de validade que só se descobre à posteriori]"
O artigo descreve como a Delta Air Lines e a United Airlines se diferenciaram no mercado norte-americano ao apostar em estratégias voltadas para passageiros mais ricos e frequentes. Ambas expandiram programas de fidelização, aumentaram a oferta de lugares premium (primeira classe e executiva) e intensificaram voos internacionais. Essa aposta tem gerado resultados financeiros robustos: desde 2022, Delta e United concentram a maior parte dos lucros da indústria aérea, enquanto outras companhias lutam com margens estreitas.

A estratégia provou ser estrutural, criando um fosso cada vez maior entre estas duas empresas e as concorrentes. Mesmo companhias low-cost começaram a copiar a fórmula, introduzindo versões premium dos seus serviços. Contudo, o modelo não é imune: uma recessão ou uma mudança estrutural no comportamento dos consumidores poderia colocar pressão sobre esta diferenciação.

O artigo ilustra como uma escolha clara de posicionamento (focar em clientes de maior valor e não em todos) pode criar uma vantagem competitiva sustentável. É uma aplicação prática da ideia de que estratégia é escolher o que não fazer.

Estas companhias escaparam à guerra de preços e da armadilha de ser “mais um” no mercado de voos domésticos ao criar uma experiência distinta, valorizada pelos clientes mais dispostos a pagar, ou seja: diferenciação.

Se todas as companhias aéreas decidiram competir no low-cost, Delta e United escolheram o oposto, explorando o espaço deixado livre no premium. Essa decisão passa no “teste da negação” de Roger Martin. O contrário de uma estratégia é outra estratégia.

O sector aéreo é historicamente visto como uma commodity (“um assento de A para B”), mas a Delta e a United mostram que é possível fugir à comoditização através de diferenciação por experiência, fidelização e valor percebido. Contudo, o risco de voltar à comoditização está presente à medida que rivais low-cost imitam serviços premium.

domingo, outubro 19, 2025

Isto é um não estratégico


No jornal The Times do passado dia 14, o artigo "Charlie Bigham: We don't do ready meals" é mais um exemplo de como o quotidiano está sempre pronto para nos oferecer estórias da vida real sobre estratégia.

O artigo apresenta Charlie Bigham, fundador da marca homónima de refeições premium no Reino Unido, que rejeita categoricamente a designação de “ready meal” para os seus produtos. Bigham defende que o objectivo da sua empresa é oferecer uma alternativa de elevada qualidade à restauração, centrada no prazer de comer, e não em substitutos como os batidos da Huel.
"The 58-year-old sours at the mere mention of an all-in-one Huel meal shake. "I'm sure they're great guys and they've worked brilliantly — you know, clever them," he says.
"For me it's the antithesis of everything I believe in. They're about food as fuel, we're about food for pleasure. They don't care what it looks like, what it tastes like, anything," he claimed.
Huel would no doubt disagree." [Moi ici: Bom para ilustrar que uma estratégia genuína é assim mesmo. O seu contrário não é absurdo, é outra estratégiaOu seja, Bigham dá corpo ao que Roger Martin defende: uma estratégia credível exige dizer não a opções aparentemente tentadoras (volume de mercado em “ready meals”) para criar uma identidade distinta e sustentável.]

"Don't use the term "ready meal" in front of Bigham, though. "There's a category called ready meals, we're not really part of that, we sit adjacent to it," he says, adding: "It sounds like maybe a bit weird and pedantic. Surely you make ready meals? It's like, no, we don't."" [Moi ici: Isto é um não estratégico. Ele recusa alinhar a sua marca com um espaço competitivo saturado e de baixo valor (comida pronta de supermercado). Em vez disso, posiciona-se como uma alternativa de elevada qualidade a comer fora, e não como um produto barato ou funcional. A direcção não é "comida pronta" em geral, mas comida premium que oferece prazer, qualidade e experiência, mesmo que isso implique excluir segmentos de mercado.

"While certain industry colleagues have been quick to issue dire warnings about the nation's economic outlook, Bigham is a glass-half-full type and has little time for the "doom merchants", as he calls them. "I think our job is to face the facts and ... adapt accordingly rather than lament it and say, 'Oh the sky's going to fall on our heads." 

sexta-feira, setembro 19, 2025

Perguntas sem resposta

Encontrei a política da qualidade que se segue na internet. É de uma empresa certificada.

"A XXXXX está empenhada em disponibilizar produtos e serviços aos seus clientes, que não se restrinjam à satisfação das necessidades, mas superem as expectativas, enquadrados por uma rápida evolução tecnológica, exigências de mercado cada vez maiores e uma elevada competitividade.

Todos os requisitos legais, regulamentares e a melhoria contínua da eficácia do Sistema de Gestão de Qualidade são assegurados de acordo com a norma NP EN ISO 9001:2015.

Desta forma, destacamos alguns dos princípios da nossa Política da Qualidade:

• Existir uma interação permanente com o cliente e partes interessadas, de forma a antecipar e adequar as suas necessidades e expectativas mas também conhecer a sua opinião sobre a qualidade dos produtos e serviços fornecidos;

Assegurar junto dos nossos parceiros de negócio, relações de benefício mútuo no sentido de proporcionar um crescimento conjunto;

Existirem mecanismos de gestão adequados para garantir o funcionamento de um Sistema de Gestão de Qualidade e a sua contínua melhoria; e procurar sempre novas soluções que possibilitem reforçar a empresa, tanto ao nível organizacional como pessoal, com vista a cumprir os objetivos estratégicos traçados;

• Promover junto dos colaboradores a motivação e participação ativa nos processos, estímulo da capacidade de iniciativa, trabalho em equipa, responsabilização pelo fazer bem, a formação profissional e a elevada competência técnica e humana;

• Fomentar o desenvolvimento de atividades que permitam concretizar a política da qualidade e melhorar continuamente a eficácia do Sistema de Gestão de Qualidade."

Pergunto com sinceridade:

  • Cumpre os requisitos da ISO 9001:2015?
  • Qual a orientação estratégica desta organização?
  • Quais as escolhas difíceis que esta organização faz para servir os seus clientes?

Políticas que são "Mais vale ser risco e com saúde do que pobre e doentio" são o que há mais neste mundo, chamo-lhes políticas-catequese.

A origem da palavra decidir é elucidativa.

sexta-feira, agosto 15, 2025

Melhorar o retorno da certificação ISO 9001 (parte VIII)

Parte I, Parte II, Parte IIIParte IVParte VParte VI e Parte VII.

Vamos lá ver onde estamos na viagem, redigimos uma política da qualidade que está verdadeiramente alinhada com a estratégia da organização, e agora, o que fazemos?

Agora temos duas possibilidades ...
... ou vamos já para:
  • O estabelecimento dos objectivos da qualidade; ou
  • A criação do modelo de funcionamento da organização com base na abordagem por processos.
 Em boa verdade, podemos optar por uma via ou por outra, quase que é indiferente. Começar pelos processos tem a vantagem de o consultor começar a mostrar "quantidade de trabalho" mais cedo. Por vezes, somos conduzidos a esta opção primeiro, porque trabalhar com a gestão de topo é um "gargalo", a sua disponibilidade de agenda não é muita. No entanto, cada vez me convenço mais que a melhor opção é ter paciência e avançar primeiro para o estabelecimento dos objectivos. 

Muitas vezes sinto que sou a única pessoa no mundo que se preocupa e valoriza a definição de sistema de gestão da ISO 9000:2015:
"Conjunto de elementos interrelacionados ou interatuantes de uma organização para o estabelecimento de políticas e objectivos e de processos  para atingir esses objectivos."

O meu "amor" pela definição de sistema de gestão e sua importância nasceu na versão da ISO 9000:2000 que era ainda mais simples:

"Sistema para estabelecer política e objetivos e para atingir esses objectivos."

Um sistema de gestão é um conjunto de actividades (sistema) para estabelecer uma orientação estratégica (política), traduzir essa orientação estratégica em desafios quantificados (objectivos), para evitar ser tudo blahblahblah, e depois desenvolver um conjunto de outras actividades, projectos, para atingir esses objectivos. 

A organização actual gera os resultados actuais, se queremos resultados futuros diferentes, temos de ter uma organização diferente. Temos de ser bem claros quanto aos objectivos que devemos eleger como prioritários. Na Parte VII usei a imagem do meu livro sobre o balanced scorecard e a ISO 9001:


Não quero objectivos para o sistema de gestão que não passem de desafios infantis, pueris, irrelevantes para o negócio. Ou seja, associados aos lugares-comuns da Parte VII. A menos que a organização tenha mesmo um problema com as reclamações, ou a taxa de defeitos, ou os atrasos nas entregas.

Como é que eu gosto de desenvolver os objectivos?

Aqui é que eu recorro ao mapa da estratégia e ao balanced scorecard:
  • Primeiro, quem são os clientes-alvo?
  • Segundo, quem nos ajuda a servir e a satisfazer esses clientes-alvo?
  • Terceiro, quem nos pode restringir ou influenciar na nossa capacidade de servir e satisfazer esses clientes-alvo?

Ou seja, determinamos o ecossistema onde a organização está inserida. Pode ser algo como:
Vamos usar o ecossistema da Vitrumo (ver Parte VII)

Aprendi a trabalhar com ecossistemas, por conta própria, por causa de um projecto em 2004. Depois, descobri a escola de marketing escandinava (sobretudo Gronroos, GumessonStorbacka e Nenonen, e nunca esquecer Normann - "Reframing Business - When the Map Changes the Landscape" é o livro que mais vezes reli. Cada re-leitura é uma descoberta. Não esquecer Ramirez & Mannervik).

Uma vez equacionado o ecossistema, temos de orquestrar um enredo (daí a expressão "arquitecto de paisagens competitivas") : por que é que as diferentes personagens do ecossistema haveriam de trabalhar com a organização em causa? Toda a gente sabe que os clientes são egoístas. Só pensam neles! Por que é que clientes egoístas, a pensar no que é melhor para eles, hão-de decidir que é no seu interesse que devem trabalhar com a nossa organização?

Esta pergunta obriga-nos a abandonar uma postura de "empurrar o que se produz" e começar a pensar, como se põem os clientes a puxar pelo que lhes podemos oferecer? A isto chamei "Privilegiar os inputs sobre os outputs". Ou seja, em vez de ter o foco no output da nossa organização, ter o foco no que os clientes precisam como input para a sua vida. Expressão que depois evoluiu para "Think outcome before output." Em boa verdade, mesmo o input para o cliente é instrumental, o que é verdadeiramente prioritário é o "outcome" na sua vida.

Muito recentemente, Roger Martin escreveu sobre o tema do egoísmo dos clientes, ainda que não tenha usado essa expressão, quando se referiu aos fornecedores que acham que os clientes que não lhes compram são maus. Vou recorrer a uma frase de Roger Martin que julgo que é útil usar aqui:
"The object of strategy is an integrated set of choices that compels desired customer action. But companies do not control customers: they will do whatever they wish."

Vejo estas escolhas como as peças para criar um ecossistema em que:

  • os clientes têm tudo a ganhar em trabalhar com a organização;
  • os fornecedores e outros parceiros têm tudo a ganhar em trabalhar com a organização;
  • as restrições criadas por algumas partes interessadas ou são usadas em nosso favor, ou os seus efeitos são minimizados.
Aqui tenho de reconhecer, com alguma vergonha, que só após alguns anos a ler Roger Martin é que percebi que isto é muito parecido com o que ele diz:
"What would have to be true for this strategy to work?"

Porque a verdade é que a situação actual não está a funcionar, daí a necessidade de reformular a estratégia para aumentar o retorno da certificação.

Em vez de perguntar se uma estratégia “está certa ou errada?” ou “vai funcionar ou não?”, Roger Martin propõe uma abordagem mais hipotética e criativa: importa menos julgar antecipadamente e mais explorar o que terá de ser verdade para que uma determinada escolha estratégica possa funcionar.

Este modo de pensar permite suspender o julgamento e manter a mente aberta, evita discussões estéreis entre defensores de estratégias concorrentes, ajuda a clarificar suposições escondidas por trás das escolhas e permite identificar as incertezas críticas que devem ser testadas antes de assumir compromissos.

Por exemplo, se uma empresa pretende lançar um produto premium num novo mercado, a pergunta não é se essa escolha é boa ou má, mas sim: “What would have to be true for us to succeed com um produto premium neste mercado?” 

A resposta poderá passar por verificar se os consumidores valorizam mais a qualidade do que o preço, se existem canais dispostos a vender produtos mais caros, e se a marca pode ser percepcionada como premium. Estas condições tornam-se hipóteses de trabalho, que podem — e devem — ser testadas antes de avançar.

Este tipo de raciocínio transforma a formulação de estratégia num processo de criação de hipóteses, de escolha consciente e de aprendizagem prática. Evita-se assim cair no erro de confundir desejos com realidade, adoptar estratégias apenas porque são populares ou avançar sem testar os pressupostos mais críticos.

O que faço é levar a gestão de topo da organização a pensar por que é que cada parte interessada relevante do ecossistema aceitaria de livre vontade fazer o seu papel?

Por exemplo:

Para os arquitectos:

Ampliam a minha liberdade criativa - consigo materializar visões arquitectónicas ambiciosas sem limitações técnicas ou estéticas, porque conto com um parceiro que entende as minhas necessidades e domina a tecnologia.

Ajudam a reforçar a minha reputação profissional - consigo ganhar/reforçar a minha reputação entre pares e clientes por introduzir soluções técnicas inovadoras e esteticamente refinadas, que se destacam no mercado.

Colaboram no processo criativo - participam no processo criativo de forma colaborativa agregando valor estratégico, inovador e normativo, não são um simples "recebedor" de encomendas.

Reduzem os meus riscos e frustrações - com sistemas construídos com rigor técnico e atenção ao detalhe, diminuem os imprevistos em obra e asseguram a fiabilidade dos resultados.

Para os empreiteiros:

Obras mais previsíveis e eficientes - recebo produtos claramente especificados, tecnicamente consistentes e montáveis com elevada fiabilidade, reduzindo retrabalho e atrasos.

Dão-me apoio técnico e formação eficazes - beneficío de assistência directa na instalação, formação e garantia, o que agiliza o processo e dá confiança para executar projectos exigentes.

Valorizo o meu portfolio - ao participar em projectos de alto valor estético e técnico, ganho reputação e posso alavancar novos contratos com base na qualidade entregue.

Para os donos de obra (a Vitrumo não interage directamente com os donos de obra, mas o que os donos de obra procuram e valorizam contribui para que os arquitectos seleccionem a Vitrumo, porque os ajuda a satisfazer os seus clientes):

Obra diferenciada e de prestígio alto - fico com uma solução arquitectónica que alia forma e função, funcionando como “um extra de magia” no resultado final.

Prazo cumprido e orçamento controlado - beneficío da maior previsibilidade e qualidade logística proporcionada pelo alinhamento entre arquitecto, fabricante e empreiteiro.

Menos ansiedade e custos pós-entrega - com sistemas fiáveis e apoio eficiente, evitam problemas após a obra, reduzindo encargos com assistência e surpresas desagradáveis.

Isto está a ficar demasiado longo. Na Parte IX vamos construir um mapa da estratégia, com base neste esquema, e daí chegar aos objectivos da qualidade alinhados com a política e a estratégia.

quarta-feira, agosto 06, 2025

Eu versus os maus


Na tarde da passada segunda-feira recebi um e-mail com o último artigo de Roger Martin sobre estratégia, "How I Do Strategy".

Antes de mais aproveito para recordar um outro texto de Roger Martin:
"A company’s strategy is what it does. Its strategy is the set of choices that it has put into action over time. Like the expression “you are what you eat;” you are your choices — regardless of how or why they were made. That is the case even if those choices are not written down anywhere." 

A "estratégia" de uma organização não é o que está num documento ou numa apresentação. Roger Martin defende uma visão pragmática e profundamente verdadeira da estratégia como conjunto de escolhas reais, traduzidas em acções concretas, com impacto visível. Mesmo que uma empresa tenha elaborado uma "estratégia" com palavras bonitas e gráficos coloridos, se na prática as suas decisões do dia-a-dia seguem outro rumo, então a verdadeira estratégia é essa — a que se vive, não a que se diz. E no outro extremo, mesmo que uma organização diga que não tem uma estratégia. Sorry, isso é mentira.

Agora voltemos ao artigo da passada segunda-feira:

"When your strategy is weak, the actors in your world aren’t particularly generous with you. If your offering is mediocre, customers won’t be loyal, competitors will attack you, and investors will shy away from you and/or badger you. But that is not meanness, it is fairness. However, if you have a weak strategy for a long period, you will come to believe that actors around you are mean and unfair. [Moi ici: Por favor, voltar atrás, reler o texto com calma e deixar que as palavras mergulhem no consciente com cuidado e reflexão]

But if you treat your customers well and your employees well, and your suppliers well, etc., they will reward you with their business, their loyalty, their support. Are there exceptions? Certainly. But the mean and unfair people prove the rule — that most actors in your economic system are good and fair."

Agora pensem produtores de uvas, nos produtores de leite, nos produtores de carros, nos produtores de componentes, nos produtores de vestuário, nos produtores de ... quantos assumem que o seu problema de fraco desempenho financeiro é consequência da sua estratégia, e não de uns maus que jogam com armas desiguais e fazem batota?





sábado, agosto 02, 2025

Melhorar o retorno da certificação ISO 9001 (parte VI)

Parte I, Parte II, Parte IIIParte IV e Parte V.


OK, a empresa decidiu que precisa de outro sistema de gestão, um que esteja alinhado com a estratégia da empresa.

No final do século passado, primeiros anos deste século, tive oportunidade de começar a trabalhar de acordo com a metodologia que estou a apresentar nesta série de postais. Nessa altura, início do choque chinês, o trabalho começava quase sempre por reformular a estratégia, construir uma estratégia nova porque a anterior, mesmo que apenas implícita, já não estava a funcionar e isso via-se pelos resultados financeiros, perda de clientes, perda de margens. O primeiro caso nem foi por causa dos chineses, foi por causa dos concorrentes turcos atraírem um conjunto de marcas escandinavas, habituadas a produzir as suas peças têxteis em Portugal, por causa dos seus preços mais baixos.

2º Inocular orientação estratégica através da política

Consideremos o exemplo que se segue:

As empresas que geram cada um desses produtos têm o mesmo SGQ? Têm as mesmas prioridades? Claro que não.

Comecemos pelo contexto interno e externo (claúsula 4.1). Especulo:

Continuemos com as partes interessadas (cláusula 4.2). Continuo a especular:


Por exemplo, as diferenças entre as partes interessadas da Rolex e da Casio traduzem-se directamente em escolhas distintas dentro dos SGQ. Por exemplo, a nível de gestão de fornecedores:


Recordo a diferença entre as bolas pretas, azuis e vermelhas. Diferentes estratégias, diferentes escolhas, diferentes arranjos organizacionais.

Agora foquemos a nossa atenção na política da qualidade. Quando olhamos para uma política da qualidade vêmos claramente essas escolhas, essas diferentes de partes interessadas e de contexto? 

Acabei de ir ao Google e escrever "quality policy example" encontrei logo este exemplo (primeira imagem que me aparece):

Vamos lá descascar este exemplo:
"Your Company will consistently provide products and services that meet or exceed the requirements and expectations of our customers. We will actively pursue ever improving quality through programs that enable each employee to do their job right the first time and every time."
Fica claro quais são os "requirements and expectations of our customers"?
Fica claro quais são os clientes-alvo?
Fica claro quais são os nossos produtos e serviços?

A resposta às perguntas é: Não!


Vamos aplicar o teste que aprendi com Roger Martin. Vamos negar a política da qualidade do exemplo:

"Your Company will not consistently provide products and services that meet or exceed the requirements and expectations of our customers. We will not actively pursue ever improving quality through programs that enable each employee to do their job right the first time and every time."

Esta versão parece absurda, é absurda — ninguém a adoptaria ou defenderia. E é exatamente esse o ponto. Se uma afirmação se torna absurda quando negada, então o original não era uma estratégia — era um lugar-comum. 

Se pesquisarem o Google e pedirem exemplos de políticas da qualidade vão ficar inundados por declarações que não têm qualquer componente estratégica pois estão cheias de lugares-comuns:

  • Não têm escolhas - Tentam ser tudo para todos.
  • Não têm foco - "Consistentemente", "atingir ou superar", "todas as vezes" são aspirações.
  • Sem alternativas consideradas - Descrevem a perfeição como padrão, sem reconhecimento de limites, riscos ou prioridades.
  • Acordo universal - Ninguém argumentaria contra... o que as torna sem sentido em termos de diferenciação.
E como é a política da qualidade da sua empresa? É clara quanto às escolhas? Proporciona foco? Considera alternativas? 

Na parte VI vou descrever o racional que uso para ajudar uma empresa a formular uma política da qualidade com estratégia inoculada.

Atenção!!! Não estou a dizer que o exemplo de política da qualidade acima não cumpre os requisitos da ISO 9001, estou a dizer que não tem utilidade para alinhamento estratégico por falta de clareza, por estar cheia de lugares-comuns. Embora não consiga ver como é que a cláusula 5.2.1 a) "is appropriate to the purpose and context of the organization and supports its strategic direction" é respeitada com o template acima. 

quinta-feira, julho 24, 2025

Melhorar o retorno da certificação ISO 9001 (parte I)


Em 2014 descobri esta citação:
"Napoleon said: To understand someone, you have to understand what the world looked like when they were twenty."

Voltei a lembrar-me dela quando à dias reli “There Are Still Only Two Ways to Compete” de Roger Martin (HBR, 2015). O artigo começa assim:

"Back in the early 1960s, the great Boston Consulting Group founder and strategy theorist Bruce Henderson asserted that there was only one way to successfully compete: gain a relative market share advantage over all competitors so as to have lower costs than all of them. The payoff is that it puts the firm in a position to drive those relative costs even lower as competition unfolds due to the learning curve advantage."

Entretanto, no passado dia 22 de Julho no NYT li um artigo que se ajusta bem a esta visão de Bruce Henderson, "Chinas Problem With Competition: Too Much of It".

"The competition becomes increasingly cutthroat, with rival companies undercutting one another and enduring razor-thin profit margins or even losses…"

O artigo descreve o fenómeno de competição excessiva (aquilo a que na China chamam de “involution”) na economia chinesa, especialmente em sectores industriais como o dos veículos eléctricos, têxtil e bens de consumo. Um novo produto ou tecnologia leva rapidamente à entrada massiva de fabricantes chineses, que produzem em grandes quantidades, baixam preços drasticamente e acabam por sufocar os próprios lucros com guerras de preços. 

"China’s local governments, each with its own target for economic and job growth, back a homegrown champion and shower it with financial and bureaucratic support."

Este excesso de concorrência é alimentado por incentivos locais, subsídios, pressão para o crescimento económico, e capacidade industrial excedentária. 

""Price wars and ‘involutionary’ competition will only encourage ‘bad money driving out good money,’" wrote People’s Daily…

...

These unsold goods… have intensified competition, fueling a deflationary spiral.

...

Chinese firms collectively dominate market share in an industry, but individual companies struggle to eke out a consistent profit.

...

"The involution is unsustainable — people are working themselves to death."

O resultado é uma espiral deflacionária, margens ínfimas e empresas que sobrevivem apenas graças a apoio externo. O governo chinês reconhece o problema e tenta agir, mas com eficácia limitada.

Bruce Henderson, fundador da BCG, defendia nos anos 60 que o caminho para vencer era obter quota de mercado relativa superior, porque isso permitia custos mais baixos através da curva de experiência.

No contexto da China actual:

  • Muitas empresas seguem essa lógica: aumentam volume para baixar custos.
  • Mas como todas fazem isso ao mesmo tempo, nenhuma obtém verdadeira vantagem.
  • Resultado: curvas de experiência colectivas que anulam qualquer vantagem individual.

Roger Martin, em "There Are Still Only Two Ways to Compete", relembra Henderson, mas critica a visão simplista de que basta escalar. O artigo sobre a China confirma isso: escalar sem diferenciação não é sustentável. Ganha-se mercado, mas não se ganha lucro.

A citação de Napoleão pode ajudar a compreender por que tantos decisores chineses mantêm este modelo: formaram-se num mundo onde a industrialização rápida, o crescimento a qualquer custo, e o proteccionismo local eram a norma. A China do início dos anos 2000 premiava volume e crescimento. Esse modelo está a chegar ao limite, mas muitos continuam a pensar e agir como se ainda fosse eficaz.

Pode parecer estranho mas vou relacionar isto com o melhorar o retorno da certificação ISO 9001 de que muitas empresas se queixam.

Desenho baseado numa aguarela de Frits Ahlefeldt, Hiking.org

quarta-feira, julho 09, 2025

Sem dados acerca do futuro


Há anos aqui no blogue comecei a falar no "optimismo não documentado," por exemplo:
Ontem, Roger Martin publicou um artigo, "Going on the Offensive with Creative Strategy", que está relacionado com o tema:
"My message was that in modern business, creatives are dooming themselves to high failure rates by accepting the dominant premise of modern business, which is that by objectively analyzing the past, you can predict the future.
...
In business, all ideas are subjected to the premise that we should only take an action for which data analysis confirms will garner the necessary revenues in the future to justify the investment required by the action. Analytics are taught that their job is to enforce this premise strictly and pervasively — any deviation is reprehensible and dangerous.
...
The problem is that analytics are taught a fundamental logical fallacy. To make decisions, they are taught to use a methodology that implicitly assumes that the future will be identical to the past while we definitively know that in business, the future is rarely identical to the past. But analytics enforce a methodology that assumes it is.
That is the single biggest problem in the modern practice of management.
...
The object of strategy is an integrated set of choices that compels desired customer action. But companies do not control customers: they will do whatever they wish. Analyzing past data to forecast the future behavior of people you don't control is a fantasy exercise.
...
If you are a creative, understand that you live in a business world completely dominated by analytics. It is an era - that took shape about fifty years and still dominants today — on which we will look back fifty years from now and wonder what were we thinking? And what on earth were we teaching?
It will probably take another twenty years for the current dominant business premise to be seen as utterly ridiculous."

O conceito de "optimismo não documentado" é a decisão de agir com convicção mesmo sem garantias estatísticas. É o risco de investir num caminho novo, sem “benchmarks”, baseado em algo que ainda não foi medido, mas que faz sentido. Ou como Martin escreve:

“Analyzing past data to forecast the future behavior of people you don't control is a fantasy exercise.”

E, como diria Rory, é justamente nas decisões que não podem ser sustentadas por dados históricos — porque criam o futuro em vez de o prolongar — que reside a verdadeira inovação. O que por sua vez se relaciona com a opinião de Phil Mullan acerca dos governos e do seu medo acerca da inovação verdadeira. BTW, Seth Godin também não é meigo:

"Certainty is another word for stalling."

sexta-feira, junho 20, 2025

ISO 9001: ainda faz sentido para as PME? (parte II)

Ainda antes de ter publicado aqui no blogue "ISO 9001: ainda faz sentido para as PME?" já tinha publicado uma versão mais curta no LinkedIn "Does ISO 9001 still make sense for SMEs?" na manhã de 16 de Junho.

Termino os meus textos com uma referência aos trabalhos de Nicholas Bloom et al sobre a dificuldade no spillover das boas práticas de gestão entre empresas do mesmo sector de actividade económica num mesmo país. Como se existisse uma fricção que diminui a velocidade de propagação.

Entretanto, durante a tarde de 16 de Junho Roger Martin publicou "Influenceability, Society & Strategy - Don't Choose the Path of an Intellectual Hermit":

"the problem with uninfluenceable people

...

Society is what we construct when individual people in it interact with one another. When they interact, they influence one another and that pattern of interaction and influence shapes society.

...

People who are completely uninfluenceable can’t participate in that societal building and shaping process. By definition, uninfluenceable people can’t learn, can’t get better, and get completely stuck

...

If you are influenceable, you would want help from others in coming up with the most useful interpretation of the law or Bible or anything else. If you are uninfluenceable, that is simply not an option.

Why it Matters for Strategy

Influenceability is important to contemplate in strategy because strict constructionism dominates in the modern practice of strategy. The mantra is to do the analysis and then do what the analysis says. Anything else is considered to be negligent and abhorrent. The analysis is viewed as providing ‘the right answer.’ If you don’t concur, you are an anti-analysis business floozy. And that reinforces the dominant culture.

My experience of executives is that under this strict constructionist regime, they tend to become more uninfluenceable as their careers progress. They get more inclined to say: I know this business, this is the way it is always done, the analysis agrees with me, so it is what we are going to do."

Talvez exista, afinal, uma ligação entre a fraca difusão das boas práticas de gestão e a incapacidade de muitos dirigentes para se deixarem influenciar por perspectivas externas. Bloom et al mostram-nos que, mesmo dentro do mesmo sector e país, as diferenças de desempenho entre empresas podem ser abissais — não por falta de acesso à informação, mas por falta de absorção. Roger Martin, por sua vez, sugere que a influência mútua — e a abertura à influência — é condição essencial para o progresso individual e colectivo. Quando a cultura organizacional cristaliza em torno de certezas analíticas e de "modelos de sempre", deixa de haver espaço para o verdadeiro diálogo, para a escuta, para a aprendizagem.

Talvez por isso a ISO 9001, apesar da sua natureza genérica e da sua longa história, continue a fazer sentido: porque obriga a escutar, a medir, a rever e a melhorar. E, como lembra Martin, só melhora quem se deixa influenciar.

quarta-feira, abril 16, 2025

É essencial para a dignidade do trabalho





 

"The absence of a coherent strategy makes it impossible to tell, in advance, whether any decision is good, bad or indifferent. So, if your company (or, closer to you, your boss) doesn’t have a coherent strategy, you won’t be able to tell until it is too late whether all your hard work ads or subtracts value. Many times, in the wake of a decision that produces a terrible outcome, observers ask: “What were those idiots thinking?” I strenuously object to the ‘idiots’ characterization. Chances are that those involved in making the decision weren’t idiots. They were probably both smart and hardworking. But they just had no strategy. And when you have no strategy, anything and everything can seem like a wise choice at the time. That is why we see so many choices that, ex post, seem to make no sense.

...

 Strategically-incompetent CEOs have many excuses for not putting effort against strategy — all of them self-defeating. But the biggest reason is that since they don’t know what strategy is, they don’t see any real reason why they should spend time on it.

...

when you don’t have a coherent strategy, bad outcomes are likely to happen routinely because actions without coherent strategy are essentially random. They seem like a good thing at the time because there aren’t logical criteria against which to evaluate them.

...

Bad strategy triumphs in the end. It creates untold destruction — wasted time, wasted resources, wasted investments."

Roger Martin começa por denunciar uma realidade dura mas frequente: a ausência de uma estratégia coerente transforma o trabalho em esforço aleatório e, por vezes, inútil. Sem uma lógica clara de escolhas, qualquer decisão parece boa no momento — até que, retrospectivamente, os resultados revelem o contrário.

E é por isso que até pessoas inteligentes e trabalhadoras, quando operam num contexto sem estratégia, acabam por tomar decisões que mais tarde se revelam desastrosas. A ausência de estratégia não se manifesta apenas pela falta de um plano - manifesta-se também na cultura, nos produtos, nas pessoas e na gestão medíocre.

A causa está montada: sem estratégia, a organização não tem critérios lógicos para avaliar acções, e tudo parece válido até à próxima crise. Estratégia fraca ou inexistente conduz, inevitavelmente, a ... desperdício.

Por isso, é essencial dizer a verdade sobre estratégia: não é um slogan, não é um plano redigido em PowerPoint, não é um documento feito por consultores numa sala fechada. Estratégia, no sentido mais útil do termo, é um conjunto coerente e fundamentado de escolhas. Essas escolhas são difíceis: implicam dizer não a opções atractivas. Implicam cortar pontes para caminhos alternativos. Sem esse acto de renúncia, não há foco, e sem foco não há progresso.

A estratégia serve para enquadrar a acção, deve ser coerente (não se contradiz) e fundamentada (baseada nos factos). A estratégia não é uma verdade eterna nem uma essência pura. Ela vive, respira, ajusta-se. É sensível ao contexto, aos sinais do sistema em que opera. Tem de ser interrogada, adaptada, descartada e reinventada, porque a realidade muda. E as boas organizações  têm essa humildade.

Uma estratégia sólida manifesta-se em alinhamento: desde o colaborador da linha da frente ao director-geral, todos compreendem o rumo. Esse alinhamento de decisões, acções e cultura - essa coerência fractal — é o que distingue empresas que sabem para onde vão. A ausência de estratégia, pelo contrário, manifesta-se como desorientação, reacção sem direcção, e um cansaço constante. Quem trabalha nesse contexto vive num "matadouro" profissional — como Roger Martin o caracteriza — e deve procurar saída, no máximo ao fim de dois anos.

Neste sentido, a estratégia não é apenas importante para a empresa - é essencial para a dignidade do trabalho e para a possibilidade de contribuir com sentido.

Trechos retirados de "Stop Working for Loser Strategists



quarta-feira, março 26, 2025

"the ability to generate unique solutions"

"LLM/AI is a mode-seeking device. It surveys its giant database and comes back with relevant elements found most frequently — as with the six potential solutions to my second problem.

...

The other limitation of LLM/AI as a mode-seeking device is that it is utterly incapable of generating unique new solutions. Such solutions simply don’t exist in the LLM/AI’s world. Their world is the catalogue of what currently exists, and their search algorithm focuses on what is found most frequently within what currently exists.

PoS [practitioners of strategy] who have the ability to generate unique solutions will continue to be valued — and very highly."