sexta-feira, janeiro 10, 2025

Portugal, Netflix e produtividade

Ainda ontem, na "Curiosidade do dia", voltei a usar a metáfora:

"ninguém diz ao filho de 5 anos que a festa de Natal do seu jardim-escola foi uma valente porcaria."

Comecei a usar essa metáfora em Fevereiro de 2024 em "Outra coisa que me faz espécie". Lista completa do seu uso: aqui.

A metáfora "ninguém diz ao filho de 5 anos que a festa de Natal do seu jardim-escola foi uma valente porcaria" encapsula a dificuldade cultural e emocional de confrontar realidades desconfortáveis ou mediocridades com honestidade brutal. Ela descreve a tendência de evitar críticas directas, especialmente em contextos onde há a expectativa de proteger ou encorajar aqueles que ainda não atingiram a maturidade — seja emocional, profissional ou estrutural. É uma forma de ilustrar que a complacência e o elogio vazio podem perpetuar estagnação e inacção, em vez de fomentar crescimento e evolução.

No contexto de Portugal e da produtividade empresarial, a metáfora aponta para uma necessidade urgente: abandonar a retórica de conforto e assumir a verdade sobre o desempenho económico. O país não conseguirá alcançar a produtividade média europeia suportado em empresas que operam em sectores pouco produtivos, dependentes de baixos custos ou desprovidas de inovação ou marca/design. A ilusão de que as coisas podem melhorar com soluções simplistas — como formações isoladas, subsídios ou reduções pontuais de impostos — é semelhante ao sorriso amarelo dos pais na festa escolar: confortável, mas ineficaz.

Portugal precisa de uma política económica - que tenha coragem de encarar os desafios estruturais de frente. Isso significa:

  • Deixar empresas improdutivas morrerem: Recursos escassos devem ser alocados a projectos com potencial real de retorno e crescimento. Persistir em salvar empresas que não conseguem competir internacionalmente apenas perpetua a mediocridade e reduz a eficiência do tecido empresarial.
  • Atrair empresas com capital e know-how de alta produtividade: A experiência irlandesa mostra que o salto de produtividade não ocorre apenas melhorando o existente, mas atraindo novas empresas e sectores que transformam a economia estruturalmente. Numca esquecer os números deste postal "Em Portugal, a conversa de café é a norma (parte II)"
  • Aceitar a dor da transição: A transição será desconfortável, com perdas inevitáveis. Mas a longo prazo, um "metabolismo económico" saudável — onde empresas novas substituem as antigas e recursos são realocados de forma eficiente — é essencial.

Confrontar o "filho de 5 anos" com a verdade pode parecer cruel, mas é um acto de maturidade colectiva. É o único caminho para abandonar a postura complacente de "China da Europa" do passado e construir um futuro onde Portugal seja produtivo, capaz de alcançar o nível médio de desenvolvimento económico europeu.

Ontem, durante a caminhada matinal li mais uma série de textos do último livro de Seth Godin, "This is strategy", a certa altura apanho isto:

"93. When Did Netflix Become Netflix?

Netflix began as a DVD rental company. Ubiquitous red envelopes and a huge selection were the hallmarks of their early success.

After they defeated Blockbuster and had the market to themselves, Reed Hastings and Ted Sarandos made a strategic decision to shift the future of the company to streaming movies and original programming. And they communicated this commitment in a very simple way:

They stopped inviting the DVD leadership team to meetings. [Moi ici: Percebem o significado crítico desta decisão? Percebem a coragem que a suporta?]

Even though DVD rentals were all of their profit and most of their revenue, they knew that having these powerful voices in the room would ultimately lead to compromises designed to defend that line of business.

Our next move is often something that decreases the value of our previously hard-won assets."

Isto está a ficar longo 😬😬😬 ...  

A metáfora do "filho de 5 anos na festa de Natal do jardim-escola" e o exemplo da transição estratégica da Netflix estão intrinsecamente ligados por um princípio comum: a coragem de abandonar o conforto do status quo e confrontar a realidade para permitir a evolução e o crescimento.

No caso da produtividade empresarial em Portugal, como na história da Netflix, o apego a modelos existentes — empresas de baixo valor acrescentado, dependentes de custos baixos ou métodos ultrapassados — funciona como a "DVD leadership team" nas reuniões da Netflix. Essas estruturas, ainda que responsáveis por sustentar parte da economia actual, limitam a visão e o potencial de transformação necessária para competir em mercados globais.

A decisão estratégica de Reed Hastings e Ted Sarandos de excluir a "DVD leadership team" das reuniões não foi apenas prática, mas simbolicamente poderosa. Eles reconheceram que, para avançar, era essencial abrir espaço para ideias alinhadas com o futuro, mesmo que isso significasse sacrificar o presente. Da mesma forma, Portugal precisa deixar morrer (deixar morrer não é o mesmo que matar) empresas ou modelos que não têm futuro, para realocar recursos e criar espaço para negócios inovadores, especializados e de maior produtividade.

Essa transição não é fácil, seja para empresas, seja para economias. Envolve perdas, dor, mudanças e resistência, mas é a única forma de garantir um "metabolismo económico" saudável, em que novas empresas possam surgir e substituir as antigas. Como Seth Godin aponta, o próximo passo frequentemente reduz o valor dos activos conquistados no passado, mas essa é a essência da inovação e do progresso.

Enquanto continuarmos a bater palmas para a festa do jardim-escola, ou a insistir em proteger o que é pouco produtivo, não conseguiremos criar um futuro economicamente vibrante. Portugal precisa da coragem de encarar as suas limitações, tal como a Netflix o fez, abandonando estratégias de curto prazo para abraçar uma visão ousada e transformadora.

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