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quarta-feira, dezembro 10, 2025

Revisão pela gestão - um espaço para decidir, não para apresentar (parte IV)

Parte Iparte II e parte III.

A revisão pela gestão prevista na ISO 9001:2015 é, por definição, um espaço de avaliação, reflexão e decisão. No entanto, em muitas organizações, a reunião transforma-se numa sequência interminável de apresentações, gráficos, explicações técnicas e leituras de relatórios. O que deveria ser um momento de liderança estratégica converte-se num exercício de transmissão de informação — precisamente aquilo que não acrescenta valor quando se está a gerir um sistema da qualidade.

A ISO 9001 é muito clara: as entradas do 9.3.2 devem ser consideradas, isto é, analisadas, sintetizadas e preparadas antes da reunião. Num webinar sobre a revisão pela gestão, costumo dizer: "Meeting time is too expensive and should be used wisely." A reunião não existe para fazer apresentações; existe para tomar decisões.

E para que a reunião seja um espaço de decisão, há uma condição essencial: toda a informação deve ser distribuída com antecedência, e todos os participantes devem chegar à reunião tendo estudado essa informação. Isto é o que permite que o tempo colectivo seja usado para interpretar, decidir e orientar o futuro do sistema — e não para ouvir o que poderia ter sido lido antes.

Preparação prévia: o segredo para libertar a reunião. O ponto 2 do fluxograma lá em cima.

A qualidade da revisão depende mais do trabalho realizado antes da reunião do que do que ocorre durante a reunião. O processo é simples:
  1. Os responsáveis preparam todas as entradas da cláusula 9.3.2, com análise, síntese e tendências, e não apenas dados brutos. Não afoguemos a gestão de topo em dados. Temos de lhes dar significado, não números.
  2. Esta informação é enviada com antecedência suficiente (muito difícil em Portugal).
  3. É solicitado (e exigido) que todos os participantes a estudem cuidadosamente.
  4. A agenda é construída não com tópicos, mas com perguntas que exigem decisões.
  5. A reunião discute apenas o que precisa ser decidido.
O grande erro é tentar "fazer tudo numa reunião": apresentar dados, explicar, analisar, interpretar e decidir (e até planear as acções que implementam as decisões). Quando isto acontece, a reunião torna-se pesada, longa e, muitas vezes, inconclusiva. A gestão vai para casa com resmas de slides; o sistema fica na mesma.

Há anos li que Jeff Bezos introduziu na Amazon uma prática famosa para lidar com um problema universal: pessoas que chegam às reuniões sem ter lido a documentação previamente. Em vez de transformar a reunião numa aula improvisada, Bezos instituiu os 15 minutos de silêncio no início de cada reunião estratégica.

Funciona assim:
  • A documentação é distribuída antes; todos deveriam lê-la.
  • Mas como alguns chegam “em branco”, a reunião começa com 15 minutos de silêncio absoluto.
  • Cada pessoa lê a documentação final novamente, desta vez sem interrupções.
  • Só depois se começa a discutir — e já em cima de informação partilhada.
É simples, eficaz e profundamente alinhado com o espírito da ISO 9001: todos têm acesso aos factos, todos têm entendimento comum e a reunião avança directamente para a tomada de decisões.

Este pequeno truque elimina dois problemas clássicos:
  • as reuniões que se tornam apresentações;
  • e os participantes que opinam sem conhecer os dados.
Adoptar esta prática numa revisão pela gestão é transformar a reunião num momento de inteligência colectiva e não num desfile de slides.

O valor real da revisão do sistema não está em apresentar informação; está em decidir: que processos precisam de ser repensados, que riscos aumentaram e exigem acção, que recursos são necessários, que prioridades mudaram, que lições do passado influenciam o futuro.

Quando a reunião se liberta de apresentações, cria espaço para perguntas difíceis, para interpretações cruzadas, para aprendizagem organizacional e, sobretudo, para decisões alinhadas com a estratégia e o contexto.

Uma revisão pela gestão que se limita a apresentar dados não cumpre o propósito da ISO 9001; uma revisão que produz decisões claras, responsáveis e prazos definidos cumpre-o plenamente.

A revisão do sistema é um dos raros momentos em que a organização pára para pensar. Não desperdiçar esse espaço com apresentações é um teste de maturidade. A liderança reúne-se para tomar decisões estratégicas, não para ouvir.



segunda-feira, dezembro 08, 2025

Revisão pela gestão - preparar tudo, rever só o necessário (parte III)


Preparar tudo, discutir só o necessário: a lógica da cláusula 9.3.2

Quando a norma diz que a revisão pela gestão deve ser “planeada e realizada tendo em consideração” um conjunto alargado de entradas, está a pedir algo muito concreto: todas as entradas devem ser preparadas, analisadas e disponibilizadas à gestão antes da reunião. 

No momento da preparação da revisão, a organização deve produzir informação clara, bem analisada e bem pensada sobre tudo o que a norma lista na cláusula 9.3.2: auditorias, desempenho de processos, satisfação do cliente, reclamações, acções correctivas, adequação de recursos, contexto externo e interno, partes interessadas, riscos e oportunidades, entre outros. Este trabalho é obrigatório e independente do que será discutido, ou não, na reunião. Pode fazer parte de um relatório para a revisão do sistema.

Mas uma coisa é preparar informações sobre tudo; outra, muito diferente, é discutir tudo em reunião.
É aqui que muitas organizações desperdiçam tempo e energia — confundem a obrigação de preparar informação com a de ocupar a agenda. O resultado é uma revisão pesada, longa, dispersa e quase sempre improdutiva.

A ISO 9001 não exige isso. A norma pede que as entradas sejam consideradas; não diz que todas devem ser tratadas oralmente, nem que todas exigem decisão.

A solução inteligente: preparar 100%, discutir 20%. A prática mais eficaz — e totalmente conforme com a norma — é a seguinte:
  • Preparar toda a informação prevista na cláusula 9.3.2 num relatório para a revisão do sistema;
  • Analisar, sintetizar, apresentar tendências e disponibilizar tudo à gestão de topo antes da reunião.
Este trabalho garante a conformidade documental e permite que a gestão tenha uma visão completa do sistema. Depois, vem a preparação da agenda. E a informação do relatório deve ser utilizada para construir a agenda de forma selectiva

A agenda não deve ser uma lista de tópicos — deve ser uma lista de perguntas que exigem decisões.
Se um item foi analisado no relatório e não requer mudança, acção ou decisão, não precisa de ocupar tempo de reunião.

É apenas registado no relatório como "considerado sem necessidade de acção".

Há que concentrar a reunião apenas no que exige direcção, decisão ou mudança.

Depois, na acta da reunião registam-se que entradas geraram decisão — e quais não.

A norma exige evidência de consideração, não debate de cada parágrafo da cláusula 9.3.2. Registar que um item foi analisado (no relatório) e não exige acção é plenamente conforme — e, de facto, é uma boa prática.

Esta abordagem cria as condições para melhores reuniões de revisão, porque evita  que fiquem reduzidas a um exercício de “checklist” sem reflexão real. Ao separar claramente "informação que deve ser preparada" de "informação que deve ser debatida", a organização protege o tempo da gestão de topo e aumenta a qualidade das decisões.

A revisão deixa de ser uma descarga de dados e passa a ser um momento estratégico, onde a gestão responde a perguntas como:
  • O que precisa de mudar no sistema para continuar eficaz e adequado?
  • Que riscos se tornaram críticos este ano?
  • Que capacidades precisamos para o próximo ciclo?
  • Que processos deixaram de servir o futuro?
Não esquecer: A norma obriga-nos a olhar para tudo, mas não a discutir tudo. A organização cumpre a ISO 9001 quando prepara e analisa todas as entradas da cláusula 9.3.2, documenta que foram consideradas, selecciona para a reunião apenas os pontos que exigem decisões e centra a agenda em perguntas que obrigam a agir.

É a combinação de rigor documental e foco estratégico que transforma uma revisão pela gestão numa ferramenta de liderança — e não num ritual anual de apresentação de dados.



sábado, dezembro 06, 2025

Revisão pela gestão - questões em vez de tópicos (parte II)

Uma revisão pela gestão eficaz começa muito antes da reunião ter lugar. Começa pelo modo como a agenda é construída. A ISO 9001 exige decisões informadas, análise crítica e foco no futuro — mas muitas agendas continuam a ser meras listas de tópicos, como "Auditorias", "Reclamações", "Indicadores" ou "Objectivos". Tópicos assim não dizem nada sobre o porquê de cada ponto estar ali (parece que estão ali apenas porque fazem parte da cláusula 9.3.2), nem sobre o que se espera decidir. Resultado: reuniões longas, dispersas, reactivas e pobres em conclusões.

Há um modo simples e poderoso de transformar tudo isto: escrever a agenda como perguntas, não como tópicos. A diferença parece subtil, mas tem um efeito profundo na clareza, na participação e na tomada de decisão.

As perguntas exigem clareza de propósito. Um tópico como "Indicadores do processo comercial" não revela o motivo da discussão. Mas uma pergunta como "Que decisões devemos tomar sobre o desempenho do processo comercial no último ano?" esclarece de imediato o objectivo. A equipa deixa de vaguear. O foco impõe-se.

Uma pergunta dá direcção; um tópico apenas apresenta uma intenção vaga.

As perguntas definem o tipo de conversa esperado. Quando a agenda apresenta apenas tópicos, ninguém sabe se o propósito é informar, analisar, discutir ou aprovar. As perguntas eliminam a ambiguidade:
  • “Que riscos precisamos considerar antes de aprovar este objectivo?”
ou
  • “Que opções temos para resolver esta não conformidade recorrente?”
Assim, todos chegam à reunião preparados para o nível de reflexão adequado.

As perguntas aumentam a participação. Perante um tópico abstracto, muitos adoptam a atitude passiva do "vamos ver o que acontece". As perguntas fazem o contrário: obrigam o cérebro a procurar uma resposta e, por isso, convidam à participação. Gera-se um contributo mais rico, mais concentrado e mais colectivo.

Perguntas puxam pela inteligência da equipa; tópicos deixam a inteligência adormecida.

As perguntas encurtam reuniões e evitam dispersões. Cada ponto pode ser encerrado com uma simples verificação: "Respondemos a esta pergunta?"

Se sim, avança-se. Se não, clarifica-se o que falta. Desta forma, evitam-se divagações, repetições e discussões paralelas — aquelas que transformam uma revisão pela gestão numa maratona sem rumo.

As perguntas revelam pressupostos escondidos. Uma lista de tópicos raramente obriga alguém a explicitar o raciocínio. Uma pergunta, pelo contrário, impõe a exposição das premissas.

Um exemplo simples:
Tópico — “Recursos e orçamento”
Pergunta — “Quais são as limitações reais de recursos para o próximo ano e que pressupostos estamos a fazer?”
A segunda formulação torna visível aquilo que a primeira esconde. E só quando se revelam os pressupostos é possível tomar boas decisões — exactamente o que a ISO 9001 exige.

Exemplos práticos na ISO 9001. Aqui fica uma tradução directa para o contexto da revisão do sistema pela gestão:





quinta-feira, dezembro 04, 2025

Revisão pela gestão - vamos todos subir à varanda?



Em Maio de 2024 descobri uma metáfora que tenho usado muitas vezes:
"The biggest obstacle we face when we're dealing with conflict isn't what we think it is. We usually think it's the 'other' sitting across from us at the table — a difficult individual, organization or nation. But I've found the biggest obstacle to getting what I want in any situation is even closer than that: It's me. It's us. It's on our side of the table.
The problem lies with our natural human tendency to react - to act and speak without thinking, in ways that are contrary to what we want to achieve. As the old saying goes, 'When you are angry, you will make the best speech you will ever regret. Either we attack or avoid, which doesn't solve the problem, or we accommodate and give in.
The secret is to do the opposite, which is where the metaphor of going to the balcony comes in. It means pausing and taking a step back from the situation. I counsel people to imagine themselves standing on a balcony overlooking a stage on which the conflict in question is taking place. The balcony is a place of calm, control and perspective. It's a place where you can see the bigger picture. Doing this work within ourselves is the key precondition for getting to yes for all involved."

Uma revisão pela gestão (cláusula 9.3 da ISO 9001) eficaz exige exactamente aquilo que quase nenhuma organização faz: subir à varanda (balcony) antes de entrar no detalhe. A metáfora de William Ury ajuda a traduzir o espírito da ISO 9001 porque descreve o movimento essencial que a norma pede — ganhar distância para ver o sistema como um todo. Sem varanda não há visão; sem visão não há gestão.

Na varanda vê-se o "bigger picture". E é precisamente isso que as cláusulas 4.1, 4.2 e 9.3.1 solicitam: começar por observar o contexto externo, as partes interessadas, as tendências de mercado, a tecnologia emergente, os riscos que crescem e as oportunidades que despontam. 

Uma revisão pela gestão não pode começar no ruído das não conformidades e dos indicadores; tem de começar com perguntas que levantem a cabeça da organização: O que mudou à nossa volta? O que é que o mercado nos está a dizer? O que realmente aprendemos sobre os nossos clientes nos últimos doze meses? Quando esta perspectiva não existe, a revisão reduz-se a um relatório anual — e perde o seu poder transformador. Ficamos presos no passado.

Subir à varanda também serve para sair da defensiva. Enquanto estamos "no palco", a tendência natural é reagir, justificar, encontrar culpados ou transformar decisões estratégicas em discussões operacionais. A ISO 9001 pede o contrário: decisões baseadas em factos, análise serena, foco no sistema. Na varanda, os dados deixam de ser munição e passam a ser informação neutra. Deixa-se de perguntar "quem errou?" e passa-se a perguntar “o que este resultado revela sobre o nosso sistema?” É um deslocamento subtil, mas decisivo: transforma a revisão num exercício de aprendizagem, não num tribunal interno. Na varanda, os dados iluminam; no palco, os dados queimam.

Da varanda nasce outra disciplina essencial: decidir. A revisão pela gestão não existe para "fazer o ponto da situação" (e meu Deus, como isto é comum); existe para orientar o futuro do sistema. Ury lembra-nos que só quando observamos o padrão e afastamos o ruído é que a decisão se clarifica. E é isso que a cláusula 9.3.3 pede: quais mudanças do sistema são necessárias? Que riscos exigem resposta? Que capacidades precisamos desenvolver? Que processos precisam de ser redesenhados? Quando a gestão sobe à varanda, deixa de ver indicadores soltos e passa a ver o sistema vivo que eles descrevem. O papel da revisão não é recolher números; é decidir o próximo passo.

A varanda ainda cria espaço para pensar em interesses, e não em posições. Uma posição é "temos muitas reclamações". Um interesse é "os nossos clientes estão a sentir falhas num momento crítico do seu ciclo produtivo". As posições discutem-se; os interesses resolvem-se. Este movimento, de sintomas para causas e de posições para intenções, é o que torna uma revisão verdadeiramente orientada para a melhoria contínua. Na varanda, deixamos de discutir quem tem razão e passamos a descobrir o que é importante.

Por fim, a varanda abre o horizonte: tira a gestão do curto prazo e coloca-a no futuro. Uma revisão feita no palco fica presa nos volumes do ano ou do trimestre, nas reclamações recentes, nas urgências do dia a dia. Mas a varanda devolve perspectiva. E a pergunta central da ISO 9001 reaparece com força: está o nosso sistema preparado para o futuro? É na varanda que surgem questões raras, mas essenciais: o nosso modelo de processos continua adequado? Temos competências para as tecnologias que vêm aí? O que os nossos clientes valorizarão daqui a dois anos? Estamos a monitorizar o que é relevante ou apenas o que é fácil de medir? Estas perguntas são as que distinguem uma revisão burocrática de uma revisão estratégica. Gestão de topo sem varanda é gestão de curto prazo.

No fundo, a metáfora de William Ury sintetiza o que a ISO 9001 pretende: uma revisão pela gestão que observa o sistema como um todo, e não o palco de cada problema isolado. Talvez a melhor forma de começar qualquer revisão seja mesmo dizer explicitamente: 

- Antes de discutirmos os indicadores, vamos todos subir à varanda.

 

quarta-feira, novembro 26, 2025

Tem um Frankenstein?

 Há tempos, usei esta imagem:


E outra parecida, para promover umas sessões de coaching sobre sistemas de gestão. Na "landing page" escrevi:
"Procedures written years ago — by people who've already left.
Too much paperwork nobody reads.
Too little connection between what’s written and what’s done."
Era — e continua a ser — o retrato fiel de muitas organizações.

Os procedimentos foram escritos aquando da implementação inicial do Sistema de Gestão da Qualidade: uma espécie de "instalação 1.0". O tempo passou, o contexto mudou, as pessoas que conheciam o sistema saíram, e aquilo que era claro e útil começou a encher-se de pequenas camadas: anexos, remendos, excepções, atalhos, práticas antigas que ninguém usa, mas que continuam lá, fossilizadas.
"Layering over, not uninstalling."
Acrescenta-se. Nunca se remove. Até que, imperceptivelmente, o sistema transforma-se num monstro: pesado, incoerente, difícil de seguir, impossível de explicar.

A imagem do Frankenstein é perfeita exactamente por isto: cada parte foi, em algum momento, adicionada com a melhor das intenções. Mas o resultado final? Uma criatura desajeitada, lenta, disforme e incapaz de cumprir o papel para o qual foi criada.

A coincidência que não é coincidência. Na passada segunda-feira, Roger Martin publicou “Revisiting Management Systems – The Nervous System of Strategy”.

E é curioso como o seu argumento é exactamente o que tenho visto e escrito ao longo dos anos — mas dito com a clareza conceptual que só ele tem. Martin explica que os sistemas de gestão, quando não são mantidos, acumulam camadas — regras, procedimentos, políticas e artefactos que já não se encaixam entre si:
“Management systems tend to accumulate over time like barnacles on the hull of a ship.”
Barnacles. Cracas presas ao casco de um navio.
E tal como as cracas tornam o barco mais lento, instável e ineficiente, os sistemas de gestão cobertos de resíduos do passado transformam-se em máquinas de fricção. Não ajudam — atrapalham.
O resultado?

Desvio estratégico. Lentidão. Capacidade de execução reduzida. E uma sensação difusa de que a organização está sempre atrasada, sempre presa, sempre a entrar em reuniões para discutir o que "já devia estar a funcionar".

Martin resume numa frase aquilo que qualquer consultor, auditor ou gestor sente todos os dias:
"In this way, if the WTP/HTW choice is the heart of strategy, then MHC are the muscles and EMS its nervous system — the network of signals, incentives, and feedback loops that translate strategic intent into coherent, day-to-day action."
Ou seja: O sistema nervoso tem de fazer com que os músculos trabalhem ao serviço do coração.

Traduzido para a realidade das organizações:
  • O sistema tem de reflectir a realidade, não uma ficção confortável.
  • O sistema tem de orientar as decisões, não de as bloquear em nome de uma conformidade bacoca.
  • O sistema tem de simplificar a acção, não de adicionar camadas de complexidade.
  • O sistema tem de ligar a execução ao que realmente interessa — a estratégia, o propósito, a criação de valor.
Um SGQ que não faz isto é apenas papel. Papel morto. Papel que assusta, se arrasta e olha para nós com aquele ar de Frankenstein institucional.

O que Martin chama “barnacles”, eu vejo todos os dias como:
  • procedimentos com 20 páginas quando bastariam 2; 
  • instruções escritas há 10 anos por pessoas que já nem lembramos;
  • práticas que mudaram no chão de fábrica mas continuam no papel;
  • auditorias internas feitas como checklists automáticas;
  • equipas que já não acreditam no sistema porque o sistema já não acredita nelas.
No fundo, tanto Martin como eu estamos a dizer a mesma coisa: Um sistema de gestão deve ser vivo. Respirar.
Atualizar-se. Acompanhar a mudança.
Ser uma ferramenta de clareza — nunca de confusão.
E se isso não está a acontecer?
Então não tem um sistema de gestão.
Tem um Frankenstein.

quarta-feira, novembro 12, 2025

A melhoria não é o problema: o que falta à ISO 9001 (parte III)


Via Rory Sutherland cheguei a este vídeo: 


A ideia é:
“You can have something brilliant, but if people don’t believe in it or it’s not credible or there’s no conviction, you’ll still fail to sell it.”

O Ed Sheeran Peep Show demonstra o absurdo de confiar apenas no valor intrínseco do produto. Ed Sheeran está ali; o "produto" é perfeito. Mas a forma como é apresentado (numa barraca duvidosa, por um tipo de chapéu e ar suspeitos) anula o valor percebido.

O público não acredita, não confia, não entra.

É exactamente o que denuncio nas empresas que vivem em modo "ISO 9001 = produto conforme" e chega:
  • Produzem algo bom, tecnicamente correcto.
  • Mas não criam valor percebido, porque não ligam o produto à estratégia, ao cliente certo, à experiência ou à história que o mercado entende e valoriza.
O erro é o mesmo: confundir a qualidade técnica com o sucesso comercial.

E relaciono com o texto recente que escrevi aqui, “A melhoria não é o problema: o que falta à ISO 9001 (parte II)
"Veja-se a cláusula 8.2, que trata da determinação de requisitos relativos a produtos e serviços. O texto é praticamente mudo sobre algo decisivo numa lógica de gestão: a necessidade de escolher clientes-alvo, de procurar e conquistar os clientes certos. A norma continua presa à ideia de “cumprir os requisitos do cliente”, como se todos os clientes fossem iguais e como se não houvesse escolhas estratégicas a fazer."
Nesse texto, explico que a norma ficou presa a uma lógica de garantir que o produto cumpre requisitos, mas não incentiva a pensar sobre quem é o cliente certo, o valor que procura e como chegar a ele.

O Peep Show oferece o mesmo produto (Ed Sheeran) a todos — sem escolher público, sem criar contexto, sem pensar em who it’s for. É a versão empírica da minha crítica à cláusula 8.2: um sistema que verifica se o produto “cumpre requisitos”, mas não se questiona se está a ser oferecido às pessoas certas, de forma convincente e com uma proposta de valor clara.

Rory mostra que a confiança é emocional e contextual. Mesmo quando o produto é “brilhante”, sem credibilidade percebida, não há compra. Do mesmo modo, a conformidade ISO garante apenas que o produto “não falha” — mas não garante que alguém queira comprá-lo.

Mas sem equacionar quem é o cliente-alvo.
  • O que é um produto conforme? 
  • Qual é o canal adequado?
  • Qual é a mensagem?


domingo, novembro 02, 2025

A melhoria não é o problema: o que falta à ISO 9001 (parte II)

Parte I gerou uma troca de ideias. Um leitor comentou, com razão, que, pelo que eu escrevia, parecia decorrer que os auditores deveriam ter formação em gestão de empresas para compreender a estratégia e os projectos de melhoria.


É um ponto interessante, mas não creio que seja assim. Essa formação extra não faria mal, é certo, mas o papel do auditor não é avaliar se a estratégia é boa ou má. O apetite pelo risco e as escolhas estratégicas pertencem à gestão. O papel do auditor é outro: avaliar se a política da qualidade está alinhada com a orientação estratégica da organização, se os objectivos traduzem essa política e se os projectos de melhoria fazem sentido para alcançá-los.

O papel do auditor é verificar a coerência, não julgar escolhas.
O auditor não é um consultor nem um gestor-sombra. O seu trabalho não é discutir se a organização devia apostar noutro mercado ou adoptar outro posicionamento.

O seu papel é confirmar se o sistema de gestão tem lógica interna:
  • Se a política expressa uma direcção clara e coerente com o que a empresa declara ser a sua orientação; 
  • Se os objectivos traduzem essa direcção em resultados concretos e mensuráveis; e
  • Se os projectos de melhoria estão efectivamente ligados a esses objectivos. (Já agora, não ajuda nada que a ISO 9001 não considere obrigatório ter estes planos por escrito)
Quando o auditor avalia esta coerência, está a cumprir a função mais nobre da auditoria: verificar se a organização faz o que diz e se o que diz faz sentido à luz do seu rumo.

Uma ferramenta simples ajuda muito nesta tarefa: o teste de reversão de Roger Martin.
A ideia é esta — uma boa política implica uma escolha. E toda a escolha implica um “não”.
O auditor pode testá-lo perguntando: “O inverso desta política também poderia ser verdade?”
Se sim, há uma escolha real. 
Se não, a política é genérica e não orienta nada.

Durante a auditoria, em vez de pedir apenas o texto da política, o auditor pode seguir três perguntas simples:
  1. A política identifica uma direcção concreta? (ou é uma lista de boas intenções?) 
  2. Os objectivos derivam dessa direcção? (ou foram definidos porque "a norma pede"?) 
  3. Os projectos de melhoria ajudam a atingir esses objectivos? (ou são acções dispersas?)
A auditoria da qualidade não deve avaliar se a estratégia é acertada, mas sim se o sistema a traduz com coerência. O auditor é, antes de tudo, o guardião dessa coerência interna entre propósito, objectivos e melhoria. Quando cumpre bem esse papel, a auditoria deixa de ser um ritual de conformidade e transforma-se num exercício de inteligência organizacional.

sábado, novembro 01, 2025

A melhoria não é o problema: o que falta à ISO 9001


Christopher Paris escreveu recentemente que a introdução do conceito de "improvement" na ISO 9001:2000 ajudou a estragar a norma, em "Why the Addition of "Improvement" Helped Ruin ISO 9001". 


A sua tese é simples: até então, a ISO 9001 servia para conferir confiança aos clientes de que os fornecedores conseguiam cumprir consistentemente os requisitos. Ao introduzir a melhoria contínua, os autores criaram algo difícil de auditar, subjectivo, que retirou clareza e desviou a norma do seu propósito inicial.

Concordo que a norma perdeu clareza, mas não acredito que o problema esteja na ideia de melhoria. O problema está noutro ponto: o mundo mudou e a excelência operacional deixou de ser suficiente para garantir o sucesso do negócio. A norma não tem sabido salientar este ponto com a devida ênfase, e isso percebe-se muito bem na forma como a política da qualidade é escrita, comunicada e frequentemente auditada, como um texto genérico, desligado da verdadeira orientação estratégica da organização.

Nos anos 80 e 90, falar de qualidade era falar de Garantia da Qualidade. O foco estava em garantir, objectivamente, que o fornecedor produzia peças conformes. O jogo competitivo era claro: reduzir defeitos, aumentar eficiência, controlar custos. Num mundo em que a excelência operacional fazia a diferença, a certificação ISO 9001 era uma poderosa credencial.

Com a ISO 9001:2000, o conceito evoluiu para o de Gestão da Qualidade. A definição de sistema de gestão é explícita: trata-se de “estabelecer políticas e objectivos e trabalhar para alcançar esses objectivos”. Isto deslocou o foco do presente (o produto ou serviço está OK) para o futuro — a organização deve gerir-se como um sistema, considerar o contexto, antecipar riscos e planear mudanças.

Convém também recordar a origem da ISO 9001. A norma foi criada não para auditorias de terceira parte, mas para que os clientes pudessem auditar os seus fornecedores e, dessa forma, assegurar-se da conformidade dos produtos adquiridos. A certificação por entidades independentes só se generalizou mais tarde. Essa génese explica muito do seu desenho inicial: verificar se o fornecedor era capaz de atender aos requisitos do cliente, ponto final. O foco era o controlo, não a estratégia.

Essa herança ainda hoje se sente. Veja-se a cláusula 8.2, que trata da determinação de requisitos relativos a produtos e serviços. O texto é praticamente mudo sobre algo decisivo numa lógica de gestão: a necessidade de escolher clientes-alvo, de procurar e conquistar os clientes certos. A norma continua presa à ideia de “cumprir os requisitos do cliente”, como se todos os clientes fossem iguais e como se não houvesse escolhas estratégicas a fazer.

Já em 1996, Michael Porter alertava para o perigo de confundir a eficiência operacional com a estratégia. Os japoneses tinham revolucionado a gestão com qualidade total, kaizen e normalização, mas ao competir todos com os mesmos métodos, ficaram presos numa “armadilha de eficiência” — todos iguais, todos competindo pelo preço.

Nos meus textos sobre a “cristalização” e a mudança de paradigma que levou ao fim da minha marca Redsigma, desenvolvi esta ideia: houve uma altura em que reduzir a variabilidade e apostar na normalização bastava para diferenciar. Mas isso esgotou-se. Quando o mundo foi invadido por produtos chineses a preços muito competitivos, a excelência operacional não foi suficiente para assegurar o sucesso do negócio. Agora, o sucesso não vem da uniformidade, mas da capacidade de criar variedade, diferenciação e valor.

É aqui que a ISO 9001 falha em ser explícita. Ao falar da política da qualidade, dos objectivos e da melhoria, a norma não sublinha suficientemente que a qualidade deve ser entendida como criação de valor no futuro, e não apenas como garantia de eficiência no presente.

Na prática, isto traduz-se em políticas de qualidade redigidas de forma genérica, que não expressam escolhas estratégicas, e em auditorias que verificam a conformidade documental, mas não questionam se a política realmente orienta a organização para o futuro.

O que está em causa não é retirar o conceito de melhoria da norma. Pelo contrário: a melhoria é essencial, mas deve ser entendida como a ponte entre a eficiência operacional e a diferenciação estratégica.

A norma deveria reforçar que:
  • A Garantia da Qualidade continua a ser necessária — garantir os requisitos vigentes é a base.
  • A Gestão da Qualidade só tem sentido se for usada para preparar a organização para o futuro — ligar o contexto, os riscos, as oportunidades e as escolhas estratégicas.
  • A política da qualidade deve deixar de ser uma formalidade e passar a ser a tradução clara da direcção da empresa, onde se vê como pretende criar valor e diferenciar-se.
A ISO 9001 não se perdeu por ter introduzido a melhoria. Perdeu relevância porque não tem sabido ligar-se de forma clara à realidade de que a excelência operacional, por si só, já não garante sucesso. O desafio hoje não é apenas fazer bem o que todos fazem, mas escolher onde ser diferente, onde criar valor, onde apostar recursos.

Uma boa norma de gestão da qualidade deve ajudar as organizações a percorrer esse caminho. Se não o fizer, ficará condenada a um papel cada vez mais burocrático, longe das decisões que realmente definem o futuro das empresas.

Uma das razões para recentemente ter lançado este curso Turn Your Quality Policy Into a Strategic Compass.

quarta-feira, outubro 29, 2025

Pode ser muito mais do que treta

A propósito de "Bosch avança com lay-off na fábrica de Braga após centenas de despedimentos"

"Estrangulada por falta de chips, a fábrica da Bosch de Braga, a maior do país do grupo alemão, vai avançar para lay-off na próxima semana, mandando para casa a maioria dos cerca de 3.300 trabalhadores, avança o Negócios."

Muitas vezes ouço dizer que a análise de contexto e a análise de riscos organizacionais, exigidas pela ISO 9001, são pura burocracia. Um exercício formal, sem utilidade prática. Mas basta abrir os jornais para perceber como estas ferramentas podem ser vitais para a sobrevivência de uma empresa.

Veja-se este exemplo da Bosch em Braga.

A fábrica, por falta de chips, avança para o lay-off da maioria dos seus 3.300 trabalhadores. A produção fica parada por tempo indeterminado.

A origem do problema não está na fábrica de Braga, nem nos trabalhadores, nem nos processos internos. Está fora: uma crise geopolítica envolvendo a Nexperia, fornecedora de semicondutores. O governo holandês interveio na empresa por questões de propriedade intelectual; o governo chinês respondeu com restrições à exportação. Resultado: chips bloqueados, cadeias de fornecimento estranguladas e a Bosch em Braga parada.

Ora, é exactamente aqui que entram as cláusulas da ISO 9001 que muitos consideram “treta”:

  • Análise de contexto (cláusulas 4.1 e 4.2): uma organização deve identificar factores externos que podem influenciar a sua capacidade de cumprir os objectivos. Neste caso, a dependência de fornecedores críticos de chips, localizados em regiões vulneráveis a tensões políticas, seria um factor de peso.
  • Análise de riscos e oportunidades (cláusula 6.1): a empresa deveria avaliar a probabilidade de interrupção no fornecimento de semicondutores e o impacto devastador que tal interrupção teria na produção. Isto obrigaria a pensar em medidas: diversificação de fornecedores, contratos alternativos, stocks de segurança, planos de contingência para suspender e retomar a produção.
  • Objectivos da qualidade (cláusula 6.2): não faz sentido definir metas de entrega e produtividade desligadas da realidade externa. Se não se consideram os riscos da cadeia de abastecimento, os objectivos ficam sempre em risco de não serem cumpridos.

Este exemplo mostra que a ISO 9001 não se resume a garantir produtos conformes. Ela obriga as organizações a olhar para fora, a ler os sinais do contexto e a antecipar riscos.

No fundo, é uma questão de resiliência. Quem encara a ISO 9001 como burocracia perde a oportunidade de usá-la como radar e bússola. Quem a leva a sério tem mais hipóteses de resistir a choques, proteger empregos e garantir futuro.

A qualidade não está apenas no produto que sai da linha. Está também na capacidade de uma organização se preparar para o inesperado. 

Quer evitar que a sua empresa seja apanhada de surpresa por factores externos como os que afectaram a Bosch em Braga?

Posso ajudar a sua organização a fazer uma análise estruturada de contexto e de riscos, transformando o que parece ser apenas burocracia da ISO 9001 numa ferramenta prática de resiliência e tomada de decisão.

Se a sua empresa precisa de alinhar objectivos com a realidade do mercado, antecipar riscos críticos e preparar-se para o inesperado, fale comigo. Não sou bruxo, mas ando nisto há muitos anos e este blogue é a evidência do que faço e analiso.

domingo, outubro 12, 2025

Não cola!

O FT de ontem traz uma artigo interessante "Tod's chair says prosecutor 'should be ashamed' of exploitation claims"
"Diego Della Valle, founder and chair of luxury shoe and bag maker Tod's, said the Milanese prosecutor leading investigations into worker exploitation in Italian supply chains "should be ashamed" for the damage he is inflicting on the country's luxury industry. Speaking at a hastily arranged press conference in Milan yesterday, Della Valle said "it is absolutely inexcusable for the prosecutor to wake up one day and tarnish [our] reputation, treating us like criminals and spreading falsehoods".
...
Milanese prosecutors allege that Tod's, which is famous for its pebbled rubber soles, failed to adequately oversee one of its suppliers in Italy's Marche region, which allegedly subcontracted production to Chinese firms paying workers as little as €2 per hour.
Della Valle said companies like his do not have the tools to oversee every single one of their suppliers' activities and should not be held responsible for their violations. "It is the suppliers' responsibility to inform the company if it hands off parts of production to subcontractors, but if they hide it from us... that will escape our [audits]," he said."
Esta declaração expõe bem os limites do controlo tradicional dos fornecedores e a necessidade urgente de auditorias mais fortes e inteligentes.

O que diz a ISO 9001? 

A ISO 9001:2015, em particular a cláusula 8.4 – Controlo dos processos, produtos e serviços de fornecedores externos, é clara: as organizações continuam responsáveis pelo que os fornecedores (e os seus subcontratados) entregam. A norma exige que as empresas:
  • Definam os controlos a aplicar quando subcontratam actividades;
  • Assegurem que os fornecedores cumprem os requisitos de forma consistente;
  • Verifiquem e monitorizem o desempenho dos fornecedores, não só na assinatura do contrato, mas durante toda a relação.
Em suma, passar a responsabilidade para o fornecedor não basta. Se um subcontratado explora trabalhadores ou falha nos padrões de qualidade, o dono da marca não pode alegar ignorância sem enfrentar consequências reputacionais e legais.

Como devem evoluir as auditorias?
As auditorias tradicionais apoiam-se em verificações documentais, visitas planeadas e declarações dos fornecedores. Isto é necessário, mas insuficiente quando existe subcontratação oculta. Para fechar esta lacuna, as auditorias devem incluir:
  • Mapeamento multi-nível da cadeia de fornecimento – identificar não apenas o primeiro fornecedor, mas também os subcontratados, oficinas temporárias ou arranjos offshore;
  • Auditorias inopinadas ou aleatórias – para reduzir o risco de visitas encenadas;
  • Entrevistas a trabalhadores e inteligência local – falar directamente com empregados, sindicatos, ONG ou comunidades locais pode revelar práticas escondidas;
  • Monitorização baseada em dados – ferramentas digitais, rastreamento de encomendas e até dados de satélite podem detectar padrões de produção suspeitos;
  • Requisitos contratuais claros – cláusulas que obriguem os fornecedores a declarar subcontratações, com penalizações caso ocultem essa informação.
Auditar não é apenas evitar escândalos — é uma necessidade estratégica. Segundo a ISO 9001, o sistema de gestão da qualidade deve alinhar-se com a estratégia da organização (cláusulas 4.1, 4.2, 5.1). Para marcas de luxo, essa estratégia inclui proteger a reputação, assegurar produção ética e garantir qualidade consistente aos clientes.

Um processo de auditoria fraco não gera apenas não conformidades — pode destruir a confiança dos clientes, dos investidores e a própria identidade da marca.

O caso Tod’s é um lembrete: as auditorias a fornecedores não podem basear-se apenas na confiança. A ISO 9001 oferece a estrutura, mas as empresas têm de ir mais além, combinando controlos sistemáticos com abordagens criativas para detectar o que alguns fornecedores preferem esconder.

Num mundo globalizado e em cadeias de fornecimento complexas, não saber já não é uma desculpa.

Eu sei que as auditorias a sistemas de gestão não são pensadas, normalmente, para lidar com "terroristas". No entanto, uma empresa pode dizer ao seu auditor, numa auditoria de 2ª parte, que um dos objectivos da auditoria é averiguar a confiança na rastreabilidade da cadeia de fornecimento. 

Seria interessante, um auditor escolher aleatoriamente uma amostra das referências produzidas num fornecedor, e entregues ao seu cliente, e depois começar um diálogo:

- Por favor, identifique todas as instalações (incluindo subcontratados) onde estas encomendas foram produzidas ou processadas.

- Pode fornecer documentação (guias de transporte, registos de expedição, registos de produção, registos do controlo da qualidade) que mostre o fluxo dos bens desde a matéria-prima até ao produto final?

- Que máquinas e operadores trabalharam neste lote? Podemos ver os registos de turnos e de manutenção?

Estas perguntas obrigam o fornecedor a ligar encomendas → instalações → pessoas → equipamentos, deixando menos espaço para respostas vagas.

Temos dúvidas sobre se estão a dizer a verdade?

Fazemos triangulação documental: comparamos facturas, documentos de transporte/expedição, capacidade de produção e registos de salários. Se o fornecedor disser que o trabalho foi feito internamente, a capacidade (número de máquinas, turnos, trabalhadores) tem de corresponder ao volume da encomenda. Se não corresponder, é um sinal de alerta.

Percorremos a linha de produção e fazemos perguntas simples aos trabalhadores: “Participou na produção desta encomenda? Em que produtos está a trabalhar hoje?” Verificamos se o trabalho em curso corresponde às encomendas no papel.

Se o fornecedor não conseguir mostrar a continuidade dos registos, há suspeita de subcontratação não declarada.

Portanto, a frase, "It is the suppliers' responsibility to inform the company if it hands off parts of production to subcontractors, but if they hide it from us... that will escape our [audits]," não cola.



sábado, outubro 11, 2025

Melhorar o retorno da certificação ISO 9001 (parte zero)



Anualmente, quantas empresas não renovam a sua certificação ISO 9001?

Não existe um número único e universalmente aceite que indique, de forma exacta, quantas empresas deixam de renovar anualmente a sua certificação ISO 9001. Os dados disponíveis apontam, contudo, para uma ordem de grandeza significativa. Estudos internacionais referem que cerca de 60 000 organizações perdem o certificado por ano, num universo de aproximadamente um milhão de certificados válidos. 

Isto significa que, num dado ciclo de renovação, uma parte relevante das empresas opta por não prosseguir. Traduzido em percentagem, estima-se que entre 10 % e 20% das empresas certificadas não renovem anualmente, dependendo do país, do sector e da maturidade do sistema de gestão. 

Quais os principais motivos para a não renovação?

Os estudos mais recentes confirmam que as causas para a não renovação podem ser agrupadas em cinco grandes categorias:
  • Em primeiro lugar, os custos financeiros e de recursos representam o motivo mais citado. As despesas associadas às auditorias de acompanhamento, aos ciclos de recertificação de três em três anos, às taxas do organismo certificador e ao tempo interno dedicado são muitas vezes vistas como demasiado pesadas, sobretudo para pequenas e médias empresas, que consideram que os benefícios não compensam o esforço. 
  • Em segundo lugar, surge a falta de valor percebido. Após ganhos iniciais em termos de melhoria de processos ou acesso a mercados, muitas organizações deixam de encarar a certificação como uma vantagem competitiva e passam a vê-la como um exercício burocrático, optando por não renovar. 
  • Seguem-se as mudanças organizacionais, como fusões, aquisições, reestruturações internas ou alterações na liderança, que podem levar a despriorizar a norma, sobretudo se a empresa adquirida já possui outro sistema de gestão. 
  • Os factores de mercado e clientes também desempenham um papel determinante: algumas empresas certificam-se apenas para satisfazer exigências específicas de clientes ou para entrar em determinados mercados e, quando essas condições deixam de existir, abandonam o certificado.
  • Por fim, destaca-se a substituição por normas sectoriais ou a maturidade interna. Em sectores regulados, como o automóvel, aeronáutico, alimentar ou médico, é frequente a substituição da ISO 9001 por referenciais específicos, como a IATF 16949, a EN 9100 ou a ISO 13485. 
Noutras situações, após anos de experiência, algumas organizações entendem que já internalizaram a cultura da qualidade e consideram que o certificado externo deixou de ser necessário.

Em síntese, as principais razões para a não renovação combinam factores económicos, estratégicos e de percepção de valor. Na maioria dos casos, a decisão não significa abandono da qualidade, mas antes uma reavaliação do equilíbrio entre custos e benefícios e do alinhamento da certificação com as necessidades reais do negócio.

Como aumentar o retorno económico da certificação?

Esta série tem tentado dar uma resposta. Falta a parte XIII com a ligação aos processos. 



domingo, setembro 28, 2025

Para um nicho dentro de um nicho

𝐘𝐨𝐮𝐫 𝐪𝐮𝐚𝐥𝐢𝐭𝐲 𝐩𝐨𝐥𝐢𝐜𝐲 𝐢𝐬 𝐩𝐫𝐨𝐛𝐚𝐛𝐥𝐲 𝐟𝐚𝐢𝐥𝐢𝐧𝐠 𝐲𝐨𝐮 (𝐞𝐯𝐞𝐧 𝐢𝐟 𝐲𝐨𝐮’𝐫𝐞 𝐜𝐞𝐫𝐭𝐢𝐟𝐢𝐞𝐝)

Here’s a hard truth: Over 90% of companies have quality policies that don’t even comply with ISO 9001:2015 requirements, yet they’re still certified.

Why? Because most policies are just clichés slapped on a wall to check a box. They sound like this:

“We will consistently provide products and services that meet or exceed the requirements and expectations of our customers.”

They don’t guide decisions, inspire teams, or drive strategy. They’re decoration, not direction.  This course is NOT for everyone.


If you’re happy with a bare-minimum quality policy that “ticks the ISO box,” this isn’t for you.
But if you’re ready to create a policy that actually works for your organization, read on.

Introducing: 𝐅𝐫𝐨𝐦 𝐖𝐨𝐫𝐝𝐬 𝐭𝐨 𝐒𝐭𝐫𝐚𝐭𝐞𝐠𝐲 - 𝐂𝐫𝐞𝐚𝐭𝐞 𝐚 𝐏𝐨𝐥𝐢𝐜𝐲 𝐓𝐡𝐚𝐭 𝐃𝐫𝐢𝐯𝐞𝐬 𝐘𝐨𝐮𝐫 𝐎𝐫𝐠𝐚𝐧𝐢𝐳𝐚𝐭𝐢𝐨𝐧 𝐅𝐨𝐫𝐰𝐚𝐫𝐝

This course is for the 10% who want more than compliance. It's a step-by-step system to build a quality policy that:
👉 Guides real decisions with clarity, not buzzwords
👉 Connects deeply with what your customers truly value
👉 Pinpoints the capabilities your company must dominate to win
👉 Follows ISO 9001:2015 intent, a strategic compass for alignment, focus, and growth

By the end, you'll have a quality policy that doesn't just sit on a wall full of platitudes; it drives your organization forward.

What you get:
✅ Self-paced online course
✅ Practical templates and real-world case studies
✅ Direct feedback to perfect your policy
✅ A proven framework to align strategy, teams, and customers

𝐖𝐡𝐲 𝐍𝐨𝐰? A weak quality policy is costing you alignment, focus, and growth every day. Don’t settle for a policy that’s just “good enough” for certification.

𝐄𝐧𝐫𝐨𝐥𝐥 𝐍𝐨𝐰 - Limited spots for feedback sessions! 

Is your quality policy a decoration or a direction? Drop a comment, I’d love to hear!

sexta-feira, setembro 26, 2025

Arbitrage: o segredo dos que ousam ver o que os outros não vêem

 

"My father ran a small business. The great thing about growing up in a small business—whether it’s a shop, a café, or a restaurant—is that if you’ve got a family business, it’s like getting a free MBA. You automatically start to notice things.
The entrepreneurial mindset is very different from the bureaucratic mindset. The bureaucratic mindset hates outliers and surprising information because it disrupts their mental model. They tend to react with hostility to what you might call counterintuitive information—just like the original behavioral economists were shunned by mainstream economists for messing with the neatness of their artificial models.
The entrepreneurial mindset is the complete opposite. When it notices something weird, it immediately starts looking for an arbitrage opportunity. In contrast, the governmental or bureaucratic mindset says, “I must maintain consistency so I can avoid blame for my decisions. I must preserve fidelity to the model I use to justify my activities, to create a spurious veneer of rationality around everything I do—all with the ultimate aim of avoiding blame and responsibility.”
The entrepreneurial mindset says: “What the hell is going on there? Wait a second... If I know this and nobody else does, there's a market opportunity here.”"

 

A cultura burocrática não quer aprender. Quer proteger-se.

Esta frase, inspirada na transcrição acima, ajuda a expor um dos maiores bloqueios à eficácia dos sistemas de gestão: o medo de enfrentar o estranho, o inesperado, o que não encaixa nos modelos mentais existentes.

A ISO 9001 fala de liderança (5.1.1), de cultura da qualidade, de avaliação de riscos e oportunidades (6.1), de acção correctiva e melhoria (10.2 e 10.3). Mas o que acontece, na prática, quando aparece um dado fora do esperado?

Quando algo não encaixa nos nossos planos, dashboards e procedimentos? Numa cultura empreendedora, alguém pára e pergunta:
-"O que é que se passa aqui? Será que isto é uma oportunidade? Podemos aprender com isto?"
Numa cultura burocrática, a reacção típica é:
"Isto está fora do plano. Vamos arquivar. Fingir que não vimos."

A ISO 9001 pede explicitamente que as organizações determinem e avaliem oportunidades, com o mesmo rigor com que avaliam riscos. Mas quase ninguém o faz.

Porquê?
Porque ver oportunidades exige desconforto. Exige aceitar o "weird".
É preciso ver padrões onde outros só vêem ruído.
É preciso estar atento a falhas no modelo dominante.
É preciso fazer perguntas inconvenientes:
  • E se o cliente não quiser o que sempre quis?
  • E se este desvio for sinal de mudança de comportamento, não de erro?
A maior parte das empresas, mesmo certificadas, confunde oportunidade com melhoria interna. Automatizar um formulário não é aproveitar uma oportunidade. É, no máximo, reduzir desperdício.

Oportunidade, em termos económicos, é arbitrage.

É ver uma diferença de valor entre dois mundos.
É perceber que há algo disponível, barato, subvalorizado — e que pode ser transformado em algo que alguém valoriza mais.
Mas para isso... é preciso ver.
É preciso aceitar que o inesperado pode ser o sinal.

Grande parte da mentalidade empresarial — sobretudo anglo-saxónica — está enraizada num modelo de competição perfeita: mais eficiência, mais corte de custos, mais concorrência, mais pressão para o preço mais baixo.

Este modelo não valoriza o estranho. Valoriza a normalização.
Procura escala, não nuance.
Procura replicar, não reinventar.
Procura "compliance", não surpresa.

Resultado?
Quando aparece uma arbitrage - uma diferença de valor percebido - quem a aproveita não é a multinacional nem o governo, mas o pequeno agente periférico que tem a coragem (ou a liberdade) de ver o que os outros ignoram.

É ingénuo esperar que a inovação venha de quem precisa de justificar todas as suas decisões com base num modelo estável e previsível. O funcionário público, o gestor de grande empresa, o auditor de gabinete - todos são formatados para manter a coerência, não para detectar o estranho.

Quem vê o estranho como "bug" nunca o vai aproveitar como "feature". A arbitrage exige curiosidade.
Exige desconfiar dos consensos.
Exige sistemas de gestão que permitam olhar para uma não conformidade e dizer:
- "Não vamos só corrigir. Vamos explorar."
- "Isto pode ser o princípio de uma ideia nova, não o fim de um desvio."

Um sistema de gestão da qualidade eficaz não serve para garantir previsibilidade.
Serve para garantir aprendizagem rápida e acção inteligente.
O estranho, o inesperado, o fora do plano — tudo isso pode ser ruído.

Mas pode também ser ouro.

Depende de quem olha.
Depende de que cultura se tem.

Depende de se estás a usar a ISO 9001 como escudo contra a realidade - ou como lente para vê-la melhor.

sexta-feira, setembro 19, 2025

Perguntas sem resposta

Encontrei a política da qualidade que se segue na internet. É de uma empresa certificada.

"A XXXXX está empenhada em disponibilizar produtos e serviços aos seus clientes, que não se restrinjam à satisfação das necessidades, mas superem as expectativas, enquadrados por uma rápida evolução tecnológica, exigências de mercado cada vez maiores e uma elevada competitividade.

Todos os requisitos legais, regulamentares e a melhoria contínua da eficácia do Sistema de Gestão de Qualidade são assegurados de acordo com a norma NP EN ISO 9001:2015.

Desta forma, destacamos alguns dos princípios da nossa Política da Qualidade:

• Existir uma interação permanente com o cliente e partes interessadas, de forma a antecipar e adequar as suas necessidades e expectativas mas também conhecer a sua opinião sobre a qualidade dos produtos e serviços fornecidos;

Assegurar junto dos nossos parceiros de negócio, relações de benefício mútuo no sentido de proporcionar um crescimento conjunto;

Existirem mecanismos de gestão adequados para garantir o funcionamento de um Sistema de Gestão de Qualidade e a sua contínua melhoria; e procurar sempre novas soluções que possibilitem reforçar a empresa, tanto ao nível organizacional como pessoal, com vista a cumprir os objetivos estratégicos traçados;

• Promover junto dos colaboradores a motivação e participação ativa nos processos, estímulo da capacidade de iniciativa, trabalho em equipa, responsabilização pelo fazer bem, a formação profissional e a elevada competência técnica e humana;

• Fomentar o desenvolvimento de atividades que permitam concretizar a política da qualidade e melhorar continuamente a eficácia do Sistema de Gestão de Qualidade."

Pergunto com sinceridade:

  • Cumpre os requisitos da ISO 9001:2015?
  • Qual a orientação estratégica desta organização?
  • Quais as escolhas difíceis que esta organização faz para servir os seus clientes?

Políticas que são "Mais vale ser risco e com saúde do que pobre e doentio" são o que há mais neste mundo, chamo-lhes políticas-catequese.

A origem da palavra decidir é elucidativa.