quinta-feira, dezembro 04, 2025

Curiosidade do dia

No The Times do 1º de Dezembro este artigo "Exodus of UK citizens driven by eastern Europeans going home".

Uma evidência do que se passa na Polónia, Roménia e Reino Unido em termos económicos traduz-se no comportamento de muitos polacos e romenos no Reino Unido:
"An exodus of UK citizens is being driven by tens of thousands of eastern Europeans moving home after gaining citizenship or taking British partners with them.
Poland and Romania recorded the highest increase in the number of British people moving from the UK in the past four years, according to United Nations data.
In total, central and eastern European countries reported an increase of more than 100,000 British citizens among their populations."
Mateus 10, 14.

 

Revisão pela gestão - vamos todos subir à varanda?



Em Maio de 2024 descobri uma metáfora que tenho usado muitas vezes:
"The biggest obstacle we face when we're dealing with conflict isn't what we think it is. We usually think it's the 'other' sitting across from us at the table — a difficult individual, organization or nation. But I've found the biggest obstacle to getting what I want in any situation is even closer than that: It's me. It's us. It's on our side of the table.
The problem lies with our natural human tendency to react - to act and speak without thinking, in ways that are contrary to what we want to achieve. As the old saying goes, 'When you are angry, you will make the best speech you will ever regret. Either we attack or avoid, which doesn't solve the problem, or we accommodate and give in.
The secret is to do the opposite, which is where the metaphor of going to the balcony comes in. It means pausing and taking a step back from the situation. I counsel people to imagine themselves standing on a balcony overlooking a stage on which the conflict in question is taking place. The balcony is a place of calm, control and perspective. It's a place where you can see the bigger picture. Doing this work within ourselves is the key precondition for getting to yes for all involved."

Uma revisão pela gestão (cláusula 9.3 da ISO 9001) eficaz exige exactamente aquilo que quase nenhuma organização faz: subir à varanda (balcony) antes de entrar no detalhe. A metáfora de William Ury ajuda a traduzir o espírito da ISO 9001 porque descreve o movimento essencial que a norma pede — ganhar distância para ver o sistema como um todo. Sem varanda não há visão; sem visão não há gestão.

Na varanda vê-se o "bigger picture". E é precisamente isso que as cláusulas 4.1, 4.2 e 9.3.1 solicitam: começar por observar o contexto externo, as partes interessadas, as tendências de mercado, a tecnologia emergente, os riscos que crescem e as oportunidades que despontam. 

Uma revisão pela gestão não pode começar no ruído das não conformidades e dos indicadores; tem de começar com perguntas que levantem a cabeça da organização: O que mudou à nossa volta? O que é que o mercado nos está a dizer? O que realmente aprendemos sobre os nossos clientes nos últimos doze meses? Quando esta perspectiva não existe, a revisão reduz-se a um relatório anual — e perde o seu poder transformador. Ficamos presos no passado.

Subir à varanda também serve para sair da defensiva. Enquanto estamos "no palco", a tendência natural é reagir, justificar, encontrar culpados ou transformar decisões estratégicas em discussões operacionais. A ISO 9001 pede o contrário: decisões baseadas em factos, análise serena, foco no sistema. Na varanda, os dados deixam de ser munição e passam a ser informação neutra. Deixa-se de perguntar "quem errou?" e passa-se a perguntar “o que este resultado revela sobre o nosso sistema?” É um deslocamento subtil, mas decisivo: transforma a revisão num exercício de aprendizagem, não num tribunal interno. Na varanda, os dados iluminam; no palco, os dados queimam.

Da varanda nasce outra disciplina essencial: decidir. A revisão pela gestão não existe para "fazer o ponto da situação" (e meu Deus, como isto é comum); existe para orientar o futuro do sistema. Ury lembra-nos que só quando observamos o padrão e afastamos o ruído é que a decisão se clarifica. E é isso que a cláusula 9.3.3 pede: quais mudanças do sistema são necessárias? Que riscos exigem resposta? Que capacidades precisamos desenvolver? Que processos precisam de ser redesenhados? Quando a gestão sobe à varanda, deixa de ver indicadores soltos e passa a ver o sistema vivo que eles descrevem. O papel da revisão não é recolher números; é decidir o próximo passo.

A varanda ainda cria espaço para pensar em interesses, e não em posições. Uma posição é "temos muitas reclamações". Um interesse é "os nossos clientes estão a sentir falhas num momento crítico do seu ciclo produtivo". As posições discutem-se; os interesses resolvem-se. Este movimento, de sintomas para causas e de posições para intenções, é o que torna uma revisão verdadeiramente orientada para a melhoria contínua. Na varanda, deixamos de discutir quem tem razão e passamos a descobrir o que é importante.

Por fim, a varanda abre o horizonte: tira a gestão do curto prazo e coloca-a no futuro. Uma revisão feita no palco fica presa nos volumes do ano ou do trimestre, nas reclamações recentes, nas urgências do dia a dia. Mas a varanda devolve perspectiva. E a pergunta central da ISO 9001 reaparece com força: está o nosso sistema preparado para o futuro? É na varanda que surgem questões raras, mas essenciais: o nosso modelo de processos continua adequado? Temos competências para as tecnologias que vêm aí? O que os nossos clientes valorizarão daqui a dois anos? Estamos a monitorizar o que é relevante ou apenas o que é fácil de medir? Estas perguntas são as que distinguem uma revisão burocrática de uma revisão estratégica. Gestão de topo sem varanda é gestão de curto prazo.

No fundo, a metáfora de William Ury sintetiza o que a ISO 9001 pretende: uma revisão pela gestão que observa o sistema como um todo, e não o palco de cada problema isolado. Talvez a melhor forma de começar qualquer revisão seja mesmo dizer explicitamente: 

- Antes de discutirmos os indicadores, vamos todos subir à varanda.

 

quarta-feira, dezembro 03, 2025

Curiosidade do dia


Há coisas incríveis, ouvi este podcast onde Rory a certa altura fala sobre o medo de arriscar nas empresas :

“most people in business… aren't really interested in enriching the business… They're more motivated by the idea of justifying their own existence within the organization… defensive decision making…”
“there's a huge asymmetry between upside gains and downside risk… you make a cock-up, you lose your job… you have a multi-million dollar idea, you get a pat on the back…”

there are huge biases if you're interested in blame avoidance as the principal motivation.”
“it doesn't matter how bad the consequences of your decision, if the decision appeared to be made rationally… you have a get-out-of-jail card.”

Depois, no mesmo dia à noite na cama li "Risk Savvy" de Gerd Gigerenzer e no capítulo 3 encontro:

"Risk aversion is closely tied to the anxiety of making errors. If you work in the middle management of a company, your life probably revolves around the fear of doing something wrong and being blamed for it. Such a climate is not a good one for innovation, because originality requires taking risks and making errors along the way. No risks, no errors, no innovation. Risk aversion is already fostered in schools, where children are discouraged from finding solutions to mathematics problems themselves and possibly making errors in the process. Instead, they are told the answer and tested on whether they can memorize and apply the formula. All that counts is learning for the test and making the smallest number of errors. That's not how to nurture great minds. I use the term "error culture" for a culture in which one can openly admit to errors in order to learn from them and to avoid them in the future."


Azeite - Inovar é mudar de quadrante, não só de produto (parte II)

Parte I.

Antes de mais quero chamar a atenção para o impacte da subida do preço nas contas de uma empresa. Um impacte tremendo em que muitos empresários à primeira não acreditam. A maioria quer que lhes façam as contas, querem ver com os seus próprios olhos. Recomendo "Aumentar preços (Parte III)".

Também recomendo "Pregarás o Evangelho do Valor" para ver o impacte de mexer no preço, para cima ou para baixo, no lucro com perda ou ganho de clientes.

Quando uma PME considera a hipótese de dar um salto para o quadrante 3 ou 4 tem medo. Por isso, recomendo uma reflexão para o gráfico deste postal "Ousar olhar para o nicho - o poder dos números":

Ontem o The Times trazia este artigo "Booming sales suggest olive oil gifts are no flash in the pan". 

O artigo destaca a ascensão do azeite de alta qualidade como presente de Natal sofisticado, substituindo bebidas alcoólicas como opção popular entre os consumidores. A mudança de hábitos de consumo, associada à valorização da gastronomia, da autenticidade e da longevidade dos produtos, está a impulsionar fortemente as vendas de azeites premium, trufados ou infusionados. A tendência reflecte um maior interesse por alimentos duráveis, saudáveis e de identidade forte — e oferece oportunidades claras para os produtores que saibam posicionar-se nesse segmento.

Quando se pensa em aumentar o rendimento agrícola só se vê a hipótese clássica: aumentar a produção, ou seja, continuar no quadrante 1 (ver Parte I). Recordar "Subsídio para um ministro (parte II)"

E saltar para o quadrante 4? 

"Spotting a bottle-shaped present under the Christmas tree once meant a welcome addition to one's drinks cabinet. Now it is increasingly likely to mean a foodie treat, such as expensive olive oil.

Mazen Assaf, an olive oil sommelier and founder of The Olive Oil Guy, said that shoppers were finally becoming as interested in the quality of oils as they were about their choice of wine.

Sales of his limited-edition bottles (costing £21 for 250ml) rose 598 per cent last Christmas, he said, and this year are on track to surpass that.

...

Nourished Communities, which offers "superior category" cold-pressed oils made from koroneiki — the "king" of Greek olives — has also enjoyed a sales boom this year. 

...

Earnings at MasWorth, which produces oils at its family groves across Greece, have grown from £200,000 five years ago to nearly £3 million and it says that pre-Christmas gift shipments have increased fourfold.

Panos Manuelides, the founder of Odysea oils, which are produced in the Peloponnese region of southern Greece, said that sales of his shimmering gold tins are up 56 per cent on last year."

A mensagem é inequívoca: o azeite premium consolidou-se como presente gastronómico valorizado. Está a acontecer primeiro no Reino Unido, mas a dinâmica vai espalhar-se — e Portugal tem vantagens naturais para acompanhar esta tendência.

Assim, mais do que promover o aumento da produção massificada de azeite, muitas vezes recorrendo à produção intensiva que gera azeites de pior qualidade (teor inferior de polifenóis), decidir começar a fazer o caminho para o quadrante 4 (há bocado escrevi "saltar" e talvez não seja a melhor palavra).

O primeiro passo para entrar no quadrante 4 é definir claramente a identidade do azeite. Cada produtor precisa de saber — e de ser capaz de explicar — o que torna o seu azeite especial. A variedade usada, a altitude e o tipo de solo, o clima, o momento da colheita, o método de extracção e, sobretudo, o teor de polifenóis, que é decisivo nos mercados premium, formam a base dessa identidade. Sem esta clareza, é impossível construir valor.

A seguir vem a história. O mercado premium não compra apenas azeite; compra significado. A história da família, o olival de onde vem cada lote, o ano da colheita, a raridade de uma variedade ou a autenticidade de uma região são elementos que transformam um produto agrícola numa experiência cultural. É por isso que as edições limitadas, quando têm uma narrativa sólida por trás, funcionam tão bem: comunicam exclusividade e dão ao consumidor a sensação de estar a adquirir algo único. (Quando penso em história, recordo sempre uma pequena casa com as suas osgas, junto à N 221 depois de Barca D'Alva e a caminho de Freixo de Espada à Cinta, o calor, as vinhas, as amêndoeiras e o Douro).

Depois, é preciso pensar deliberadamente na embalagem. No quadrante 4, a embalagem deixa de ser um recipiente e passa a ser parte integrante do produto. Uma garrafa elegante, uma lata com design cuidado, elementos visuais inspirados no mundo do vinho ou dos perfumes, rótulos que explicam porque é que aquele azeite é realmente premium — tudo contribui para elevar a percepção de valor. Em última análise, o objectivo é simples: que o azeite pareça um presente e não um produto de mercearia.

A partir daqui torna-se natural desenvolver uma gama pensada para oferecer. Garrafas mais pequenas, caixas de presente, kits de degustação, edições numeradas ou azeites infusionados — trufado, picante, limão, alecrim — ajudam a tornar o azeite numa experiência. O consumidor moderno aprecia diversidade e novidade; quer experimentar, comparar e surpreender alguém com algo distinto.

Mas nada disto funciona sem educação. Tal como o vinho, o azeite premium precisa que o consumidor perceba o que está a comprar. Notas de prova, sugestões de harmonização, fichas técnicas simples, vídeos curtos sobre degustação, explicações acessíveis sobre polifenóis ou pequenas provas comentadas fazem uma diferença enorme. Quanto mais o consumidor entende, mais valor atribui — e mais está disposto a pagar. Volto à Parte I: Mudar de roupa no escuro, talvez seja importante, mas ninguém nota.

A estratégia também implica reposicionar a forma como se vende. Um azeite de quadrante 4 não tem lugar em canais indiferenciados. Ganha vida nas plataformas de retalho gourmet, nas lojas especializadas, nos mercados urbanos mais exigentes, em parcerias com chefs, em clubes de assinatura inspirados no modelo do vinho, no e-commerce directo ou nas propostas de hotéis boutique e cabazes corporativos. São estes canais que valorizam estética, história e exclusividade.

Por fim, o Natal deve ser encarado como uma “super-sazonalidade”. É a grande janela anual em que o azeite premium pode brilhar. Campanhas específicas, embalagens natalícias, fotografias inspiradas em luxo e tradição, storytelling associado à época, pré-vendas lançadas no início do Outono e parcerias com marcas de chocolate, vinho ou queijos artesanais criam um ecossistema que potencia vendas e visibilidade. No Reino Unido, esta época já é o principal motor de crescimento dos azeites premium — e não há razão para que os produtores portugueses não aproveitem o mesmo movimento.

Talvez seja uma forma de ultrapassar a Lei dos Rendimentos Decrescentes na Agricultura.

terça-feira, dezembro 02, 2025

Curiosidade do dia



Um tema que me preocupa é o da externalização de custos. Lucros privados e problemas ambientais e sociais para as comunidades. 

Recordo o que sugeri sobre o Chile aqui.

Três artigos e um tema em comum:
  • No NYT de 20 de Outubro passado - How Chile Embodies A.I.'s No-Win Politics.
  • No FT de 1 de Dezembro passado - Pockets of resistance to data centres grow across US (complementado por "The Data Center Resistance Has Arrived")
  • No Público de 1 de Dezembro passado - Mega-projectos para Sines precisam de "muita energia, muita água e muitas pessoas" (sempre imaginei que a água para arrefecer o Data Center viria do Atlântico, mas depois de ler o artigo fiquei com dúvidas)
A promessa económica chega sempre antes da conta ambiental
Chile:
No Chile, o artigo do NYT descreve a enorme pressão sobre a água e a energia, especialmente em Santiago e nas zonas áridas do país. A Google consome volumes de água equivalentes ao consumo de milhares de famílias, e novos projectos implicariam retirar 228 litros por segundo numa zona semidesértica. Isto gera contestação social, protestos e pressão política. 

EUA:
O FT mostra exactamente o mesmo: aumento de consumo energético, pressão na rede, necessidade de upgrades pagos pelos contribuintes e receio quanto ao preço da electricidade.

Sines:
Em Sines vê-se o mesmo padrão:
  • enorme consumo de energia
  • enorme consumo de água
  • necessidade de reforçar infra-estruturas públicas
  • impacto em habitação, mobilidade, serviços públicos, saúde e escolas
A diferença?
Em Portugal, o debate começou depois dos compromissos assumidos e da obra iniciada. O presidente da câmara de Sines parece o bastonário da ordem dos médicos, agem como os últimos a saber, quando são os que têm a obrigação maior de pensar para lá do que se vai jantar logo à noite.
 
As populações descobrem tarde, e sentem que lhes esconderam dados cruciais
Chile:
As populações dizem que “não sabiam que um data center consome tanta água” até verem o estado dos terrenos e as fichas ambientais. Há sensação de opacidade. 

EUA:
Nos condados da Geórgia, o FT relata salas cheias de cidadãos surpreendidos pelo impacto real — custos de upgrades da rede, possível aumento das tarifas e impacto no solo. O artigo refere que há mais de 20 anos que os democratas não ganhavam lugares a nível estadual. Pelo menos 2 foram eleitos com base na oposição ao status quo. É como ir a um jantar, a maioria dos convidados é abstémio, mas depois, como a conta é a dividir por todos, têm de pagar os vinhos e os digestivos premium com que que uns free-riders se lambuzaram.

Sines:
No Público, a narrativa é idêntica:
  • só agora se percebe que é necessária água em volumes colossais
  • só agora se discute habitação para milhares de novos trabalhadores
  • só agora se reconhece pressão sobre escolas, saúde, estradas, ambiente
  • As consequências aparecem depois. A contestação nasce do atraso na verdade.
Governação reactiva: só se gere depois de acontecer
Este é talvez o padrão mais universal dos três textos.
  • No Chile, só após os protestos surgiu a proposta de realocar os data centers para o norte.
  • Nos EUA, só após as queixas sobre as tarifas a regulação passou a questionar o modelo.
  • Em Sines, só agora, quando as obras avançam, se reconhece a magnitude dos impactes ambientais, habitacionais e sociais.
Ou seja:
Os governos atraem o investimento primeiro e fazem as perguntas difíceis depois.

O desafio para Sines é o mesmo do Chile e dos EUA: como acolher o futuro sem destruir as condições que o tornam possível.
Isso só se resolve com:
  • planeamento antecipado
  • diálogo honesto
  • limites ecológicos claros
  • contrapartidas reais, e 
  • governação com olhos a 20 anos e não a dois

BTW, se a esquerda clássica não andasse tão preocupada com as questões identitárias, talvez tivesse muito mais sucesso; capital de protesto não falta.

BTW, no caso de Sines até me faz lembrar Bent Flyvbjerg:
"The commitment fallacy (If you want to win a contract or get a project approved, superficial planning is handy because it glosses over major challenges, which keeps the estimated cost and time down, which wins contracts and gets projects approved. But as certain as the law of gravity, challenges ignored during planning will eventually boomerang back as delays and cost overruns during delivery. By then the project will be too far along to turn back)"

Inovar é mudar de quadrante, não só de produto

A economia, ao contrário do que muitos pensam, não se move em revoluções constantes. Move-se em equilíbrios pontuados; longos períodos de estabilidade, interrompidos por mudanças rápidas e profundas. O termo é emprestado da biologia evolutiva: durante muito tempo, nada muda; depois, tudo muda de repente.

As empresas, embaladas por esse falso conforto, tendem a adormecer no quadrante onde sempre estiveram:

Quadrante 1

Produto actual, mercado actual. 

O que fazemos. Para quem o fazemos.

Mas quando o mundo muda - por novos concorrentes, novas exigências dos clientes, novas regulações ou rupturas tecnológicas - é preciso decidir para onde saltar:


Saltar para o Quadrante 3: novo mercado, mesmo produto
Em 2012, numa feira transmontana, uma artesã queixava-se de não vender colchas de linho. Talvez o problema não fosse o produto, mas sim onde o tentava vender. Na altura escrevi:
“Talvez precisasse de frequentar outras feiras, noutros países. Talvez precisasse de divulgar os seus produtos na internet. Talvez precisasse de os expor nas quintas de turismo rural que florescem no Verão entre a Beira-Alta e Trás-os-Montes.”
É o salto clássico para o quadrante 3: procurar nova procura sem mudar a essência da oferta.

Saltar para o Quadrante 4: novo produto, novo mercado
Em 2013, contei a história da transformação do burel de Manteigas. Um tecido rústico, tradicional, reinventado por uma designer belga e apresentado ao mundo com uma nova linguagem, um novo design e novas funções.
O tecido não mudou. Mas o que se fazia com ele, sim.
Passou-se de cobertores a design. De Manteigas ao Japão.
Foi um salto de quadrante — e de ambição — sem perder autenticidade.

E o Quadrante 2? Novo produto, mesmo cliente?
Aqui o caminho é menos claro. Algumas hipóteses:
  • Um produtor de fruta que muda para práticas biológicas, sem o cliente se aperceber.
  • Um fabricante que melhora a fórmula do seu produto, mantendo a marca e a embalagem.
Mas, sem educar o cliente, provar a vantagem e reconfigurar a percepção, esse salto tende a ser invisível. É mudar de roupa no escuro: talvez seja importante, mas ninguém nota.

E quando se tenta, por exemplo, vender um vinho mais caro ao mesmo cliente, sem convencê-lo da diferença, arrisca-se o insucesso.

Não basta mudar o produto. É preciso mudar a percepção.

Por isso, sair do quadrante 1, em qualquer direcção, quase sempre implica:
  • mudar de canais,
  • mudar a comunicação,
  • mudar a equipa comercial, e
  • mudar a forma como o cliente vê o produto.
Especialmente se falarmos de PMEs, que não podem competir em preço, é essencial que a mudança traga valor percebido e margens maiores.

O problema do equilíbrio pontuado é este: quando o abalo chega, já é tarde para começar a pensar.
Mais vale preparar o salto enquanto ainda se tem margem para o fazer em segurança.

Amanhã, um exemplo com azeite.

segunda-feira, dezembro 01, 2025

Curiosidade do dia

O exército persa, ao serviço de Xerxes I, depois de derrotar os espartanos no desfiladeiro das Termópilas, avançou pela Grécia adentro e saqueou e incendiou Atenas.

Entretanto, os atenienses tinham-se refugiado numa frota de 200 navios na ilha de Salamina. Temístocles, poucos anos antes, convencera a cidade a construir essa frota de embarcações rápidas e modernas.

Xerxes I, em vez de prosseguir com a invasão da Grécia como pediam os seus chefes militares, decidiu eliminar os refugiados atenienses — afinal, a guerra iniciara-se quando Atenas financiara rebeliões em cidades sob domínio persa, na costa da actual Turquia. Avançou então para Salamina. Os gregos escolheram o terreno da batalha naval, e a geografia favoreceu-os: os 200 navios atenienses derrotaram uma armada persa muito superior em número. A invasão da Grécia terminou ali, pois a logística do exército persa ficou profundamente comprometida.

Cerca de vinte anos depois, Temístocles foi ostracizado em Atenas. Xerxes I já morrera. No trono estava Artaxerxes I. Apesar de pender sobre Temístocles um prémio pela sua cabeça, este resolveu apresentar-se voluntariamente diante de Artaxerxes, que achou a situação insólita. Nem se sabe se terá concedido a Temístocles a recompensa que prometera a quem o capturasse.

Artaxerxes perguntou-lhe qual seria a melhor forma de lidar com os atenienses, que não cessavam de fomentar revoltas no seio do império persa — a mais recente ocorria no Egipto.

Temístocles aconselhou-o a fomentar guerras entre as cidades-estado gregas, de modo a que se ocupassem em disputas entre si e deixassem de intervir nos assuntos persas.

O império persa gozou, assim, de trinta anos de relativa paz, à custa da Guerra do Peloponeso, seguida da Guerra de Corinto. Primeiro financiou os espartanos contra os atenienses; depois, os atenienses contra os espartanos.

Ao provocar desunião entre os rivais, um poder externo garante influência sem recorrer à força directa.

Curiosamente, esse padrão repete-se ao longo da história, com impérios a financiarem facções rivais, a explorarem ressentimentos locais e a manipularem equilíbrios frágeis — da Antiguidade ao século XXI. Mudam os nomes e os mapas, mas a lógica mantém-se.

É um lembrete de que, apesar de toda a nossa sofisticação tecnológica e organizacional, os humanos continuam, em grande parte, movidos pelas mesmas dinâmicas de poder, orgulho e rivalidade. Talvez seja por isso que a história, tantas vezes, rima.


Ainda mais especulação (parte II)

Na Parte I, a propósito da decisão da H&M de subir na escala de valor, a conclusão era clara: quando o mercado aperta por baixo, permanecer no meio deixa de ser uma opção. A única saída é subir — mais qualidade, mais margem, menos dependência do volume.

Mas há uma diferença importante entre empresas e sectores.

Uma empresa pode tomar essa decisão. Um sector dificilmente a consegue comunicar. Porque subir na escala de valor não é apenas fazer melhor — é fazer menos.

Menos unidades, mais valor por unidade. Menos capacidade industrial necessária. Menos horas-máquina. Menos infraestruturas.

É uma escolha estratégica que tem implicações estruturais: parte da capacidade existente deixa de ser útil. E, para algumas empresas, isso não é um caminho — é uma ameaça.

Quando olhamos para qualquer sector, encontramos sempre perfis muito diferentes: empresas que vivem de valor acrescentado e outras que vivem da intensidade produtiva; algumas orientadas para séries curtas, outras para volume; umas querem complexidade, outras querem escala. Falar de “subida de valor” é fácil em abstracto, mas difícil quando se considera o impacto real sobre cada uma destas realidades.

Quando uma empresa sobe na escala de valor, decide o seu próprio destino. Quando um sector sobe na escala de valor, altera o destino de muitos. E entre esses muitos haverá sempre quem não consiga acompanhar.

É por isso que, a nível sectorial, a subida de valor é sempre falada em tom abstracto:

  • “reposicionamento”,
  • “modernização”,
  • “competitividade”,
  • “futuro sustentável”.

Mas raramente se assume a consequência estrutural: subir significa que algumas empresas terão de sair.

É por isso que, no plano sectorial, este tema é sempre tratado com cautela. Uma associação empresarial representa todos — inclusive aqueles que não conseguirão acompanhar uma subida de valor. Como dizer publicamente que o futuro exigirá fábricas mais especializadas, mas inevitavelmente menos fábricas? Como afirmar que a estrutura industrial se irá concentrar, quando isso ameaça directamente alguns dos associados?

Nenhuma associação quer abrir esta frente. É compreensível.

Mas isso não elimina o dilema: quando um sector sobe, não sobe inteiro.

Sobe a parte capaz de competir por cima.

A outra parte, mais cedo ou mais tarde, fica para trás.

E isto coloca-nos perante a pergunta que raramente é formulada de forma explícita:

- Queremos um sector maior, mas mais pobre? Ou um sector mais pequeno, mas mais rico e sustentável?

A H&M tomou a sua decisão. Para uma empresa, é uma escolha estratégica. Para um sector, é um campo minado. Portugal, em vários sectores, vive este dilema em silêncio.

Mas a pergunta é inevitável, e chega sempre mais cedo do que parece:

- Estamos dispostos a aceitar as consequências reais de subir na escala de valor?

Ou apenas gostamos da ideia — desde que nada mude onde dói?


domingo, novembro 30, 2025

Curiosidade do dia

"The Danish postal service has said it will deliver its last letter at the end of this year, instead focusing on packages to respond to changing forms of communication.

PostNord said on Thursday it would cut 1,500 jobs in Denmark and remove 1,500 red postboxes, citing the “increasing digitalisation” of society.
...
The Danish postal service has been responsible for delivering letters in the country since 1624, but since 2000 the number of letters has declined by more than 90%, it said."

A decisão da Dinamarca é mais do que a história de um serviço de correio. É um exemplo de como lidar com mudanças profundas, irreversíveis e estruturais.

E deixa um desafio implícito: Temos coragem, política, institucional e cultural para fazer o mesmo quando chegar a nossa vez noutros serviços?

Claro que a pergunta é académica, claro que sabemos a resposta, somos os reis e rainhas dos direitos adquiridos. Boa sorte!

Trechos retirados de "Danish postal service to stop delivering letters after 90% drop in numbers

A lei de Gall (parte I)

A Lei de Gall é um princípio do design de sistemas, da ciência da complexidade e da aprendizagem organizacional que afirma:

“A complex system that works is invariably found to have evolved from a simple system that worked.”

— John Gall, Systemantics (1975) 

E o seu corolário:

“A complex system designed from scratch never works and cannot be patched up to make it work. Start over with a working simple system"

O verdadeiro sentido da Lei de Gall é que a complexidade que funciona tem de surgir de forma gradual, e não ser construída de uma só vez. Os sistemas complexos bem-sucedidos — sejam biológicos, tecnológicos, organizacionais ou de gestão — desenvolvem-se por iterações sucessivas, e não através de um grande desenho inicial. Não se constrói um avião começando por um plano perfeito no papel; começa-se por um planador simples, experimenta-se, aprende-se e evolui-se a partir daí.

Da mesma forma, os sistemas simples falham de forma controlada, enquanto os sistemas complexos falham de modo catastrófico. Implementações gigantes, procedimentos demasiado concebidos ou sistemas ISO exageradamente pesados tendem a colapsar sob o peso das suas próprias ambições. Já os sistemas simples revelam os seus problemas mais cedo, com menor custo e com menor risco para a organização.

No fim, a evolução vence sempre a especificação. O refinamento progressivo gera estabilidade; os projectos demasiado desenhados geram frustração. A maturidade de um sistema constrói-se passo a passo, permitindo que a complexidade certa emerja apenas quando é realmente necessária.

É por isso que as pequenas experiências, feitas em partes controladas do sistema, são tão valiosas. Permitem validar ideias, filtrar o que funciona e, sobretudo, podar o que não serve. Quando se testa uma solução em pequena escala, os erros aparecem cedo, sem grande custo e com impacto limitado. As interacções entre pessoas, processos e tecnologia tornam-se visíveis e compreensíveis. É neste espaço reduzido e seguro que nasce a aprendizagem verdadeira, a que ajuda a perceber o que deve ser simplificado, reforçado ou abandonado.

Ao contrário, quando um sistema é implementado de uma vez, com documentação exaustiva, processos totalmente redesenhados e novas práticas impostas de cima para baixo, tudo fica mais frágil. As falhas surgem onde menos se espera, as pessoas recorrem a atalhos, a utilização real diverge do plano, e a organização vê-se obrigada a remendar continuamente para manter o sistema vivo. Um sistema concebido em grande escala tende a falhar de forma igualmente grande; um sistema que cresce a partir de pequenas experiências falha em modo “seguro”, permitindo aprender e ajustar rapidamente.

É essa capacidade de evoluir por iterações, de experimentar e refinar antes de escalar, que separa os sistemas resilientes dos sistemas pesados que ninguém usa. Ao começar com uma versão simples — suficientemente clara para funcionar e suficientemente pequena para ser corrigida — criam-se as condições para que a complexidade futura seja uma resposta natural às necessidades reais, e não uma construção teórica desligada do terreno. As pequenas experiências tornam-se, assim, o laboratório da organização: o espaço onde se valida, se elimina, se poda, se afina e, finalmente, se constrói algo duradouro.

Em suma: sistemas vivos crescem por evolução, não por desenho grandioso. E a evolução começa sempre com experiências pequenas, concretas e disciplinadas, capazes de revelar o que funciona, o que não funciona e o que nunca devia ter sido tentado. 

Lembro-me logo da nossa constituição.

Continua.

sábado, novembro 29, 2025

Outro momento de especulação

Ontem no FT um artigo interessante sobre estratégia, "H&M moves upmarket to avoid being fast-fashion victim".

A H&M está a mover-se para um posicionamento mais "upmarket" - produtos de maior qualidade, margens mais altas e menos dependência do modelo clássico de fast-fashion — para evitar ser ultrapassada pela concorrência chinesa ultrarrápida como a Shein e a Temu.

""an industry that is changing at a furious pace".

...

H&M has been increasingly squeezed from above by the likes Zara and from below by cheaper rivals including Shein, Temu and Primark." [Moi ici: A H&M está a subir na escala de valor para evitar ser vítima do fast-fashion ultrarrápido (Shein, Temu)]
...

Daniel Ervér told the Financial Times that the Swedish fast-fashion retailer was on "a very long journey" towards increased profitability

... 

Operating margins fell from more than 20 per cent in 2010 to 3 per cent in 2022. They reached 8.6 per cent in the third quarter this year, up from 5.9 per cent a year earlier. [Moi ici: A empresa está numa trajectória de longo prazo para melhorar margens e rentabilidade]

...

With the right product, we sell more with less. It becomes a more effective way of running the business," said Johanna Klingspor, H&M's head of creative development.

...

"We need to stop doing what doesn't make a difference for the customer and really shift resources and money to what makes the difference." [Moi ici: A estratégia passa por simplificar a gama, reduzir complexidade e vender mais com menos]

...

One top-ten shareholder said: "H&M were caught in between - not in Zara's price point, and definitely not in Shein's. They let the margins slide for too long." A fashion analyst added: "Ervér's elevation strategy is taking the company in the right direction as it helps to reduce the H&M brand's exposure to value fashion - the most competitive segment of the market and the most exposed to competition from not only the likes of Shein, but also second-hand platforms."

...

given how the competitive landscape has changed, we need to step up our game,""

Diagnóstico? O baixo custo deixou de ser um lugar seguro.

A H&M foi, durante anos, sinónimo de fast-fashion. Mas o modelo que lhe deu escala e margem já não funciona porque:

  • Shein, Temu e Primark ocupam o extremo ultra low-cost com velocidade e custos impossíveis de igualar.
  • Zara ocupa o espaço imediatamente acima, com moda mais rápida, mais sensorial e com preços mais altos.

A H&M está espremida entre:

  • uma pressão descendente (concorrentes mais baratos e mais rápidos)
  • uma pressão ascendente (concorrentes mais caros e mais desejados)

O meio é o pior lugar para estar.

O CEO da H&M reconhece isto explicitamente:

“We sell more with less – it becomes a more effective way of running the business.”

Ou seja, só há uma saída — subir na escala de valor

Curiosidade do dia

Mais um exemplo de Kronos e o desplante de comer os seus filhos.

Como é que alguém pensa que isto não vai rebentar nas mãos de um qualquer Passos?

Café, Paris e Mongo


No FT de ontem um artigo sobre Mongo, "In Paris, the next coffee revolution is quietly brewing".

O artigo descreve a nova revolução do café em Paris, caracterizada por uma mudança profunda na forma como a cidade consome e produz café. 
"In 2010, The New York Times published an article questioning why coffee was so bad in Paris. But by 2019, the FT's Simon Kuper was celebrating a Parisian coffee revolution - a transformation marked by independent roasters, many founded by immigrants familiar with high-quality coffee from Australia or the US, who introduced a focus on artisanal roasting methods and espresso drinks like the cortado or flat white. Today, the city's coffee culture has entered an exciting new phase, which is less centred on shaking off a bad reputation and more on micro-roasteries pushing for higher degrees of coffee nerdery and distinctiveness. In most neighbourhoods, you can find coffee shops championing single-origin beans and state-of-the-art brewing techniques. It doesn't come cheap, but it means consumers enjoy coffees that are layered and lingering - more akin to a €15 glass of wine than a €1.50 shot of espresso."
Pequenos micro-torrefactores e cafés como o Taná e o Substance Café lideram esta evolução, em que o café é tratado quase como um vinho: camadas aromáticas, terroir, fermentação controlada, co-fermentação com frutos, experiências com variedades raras. O consumidor parisiense, cada vez mais informado, procura cafés únicos, expressivos e tecnicamente impecáveis. As lojas investem em processos, estética minimalista e rituais de preparação que elevam o café a uma experiência sofisticada e identitária.
"This meticulous focus on origin, processing and brewing precision isn't unique — but part of a larger trend shaping Paris's speciality coffee scene. Kévin David of Moklair, a Reims roastery stocked across Paris, says the future lies in varietal diversity, refined drying techniques, and "processes that make coffee both clearer and deeper".
So while David chases clarity, Morceau pursues purity and Gagnaire values innovation, it somehow all adds up to a scene that feels unmistakably Parisian."

Durante décadas, o café parisiense era previsível, homogéneo, com pouca variação — exatamente o tipo de mercado “suave” e uniforme do século XX, onde todos correm atrás do mesmo pico e se copiam mutuamente.

Agora, o que Paris tem é o oposto:

  • micro-torrefações,
  • fermentações esotéricas,
  • co-fermentações com frutas,
  • perfis sensoriais raros,
  • cafés tratados como terroirs únicos.

Não há um pico para o qual todas as lojas correm. Há mil picos pequenos, um para cada tribo de gosto, exactamente como na minha metáfora de Mongo. Paris saiu do século XX e entrou em Mongo.

No texto lá em cima sobre Mongo escrevi:

"Um planeta, um mercado, pleno de diversidade que resulta do casamento das oportunidades que a tecnologia disponiliza para aumentar a variedade das ofertas, com o estilhaçar das barreiras mentais e culturais que condicionavam as opções pessoais de cada um."

É isto que o artigo mostra: consumidores capazes de distinguir cafés fermentados 30 horas vs. 70 horas, cafés lavados vs. anaeróbicos, notas de uva, maçã, flor de laranjeira.

O consumidor já não quer “um café”. Quer o seu café, adaptado ao seu pico, ao seu nicho, à sua tribo de gosto. 

Em "Diferenças entre a concorrência no século XX e em Mongo" escrevi:

"Mongo é onde não faz sentido copiar o que o outro faz, é onde faz sentido ser diferente"

E o artigo mostra lojas como:

  • Taná, focado em fermentações extremas,
  • Substance Café, obcecado pela precisão e pela clareza,
  • Terres de Café, com cafés raros de origem única.

Cada loja escolhe um pico, uma tribo, um gosto. Não tentam agradar a todos. Não tentam competir no centro.

E não estão em guerra umas com as outras — estão distantes nos seus próprios nichos.

Isto é textbook Mongo competitivo:

  • picos numerosos,
  • baixa volatilidade entre empresas,
  • clientes fiéis ao seu nicho,
  • produtos muito estáveis e diferenciados.

Nos modelos do século XX, as empresas mudam constantemente para roubar clientes na zona central comum (o “dance around the peak”) 

Em Mongo, é diferente:
  • cada empresa foca-se no seu pico,
  • aprofunda a técnica, e
  • procura diferenciação radical.
O artigo descreve exatamente aquilo que defini como Mongo: 
  • um mercado hiper-fragmentado,
  • milhões de nichos, 
  • a morte do mercado de massas, 
  • empresas que não competem em imitação mas em profundidade, 
  • consumidores que procuram a sua tribo, o seu gosto, o seu pico, 
  • estabilidade competitiva dentro de nichos muito diferenciados.
A revolução do café em Paris não é só uma tendência gastronómica; é um estudo de caso perfeito da minha metáfora de Mongo em acção.

sexta-feira, novembro 28, 2025

Curiosidade do dia

Um certo tipo de arrastão demográfico a que já estamos habituados em Portugal, agora visto na Inglaterra. Socialismo, seja ele de direita ou de esquerda, não consegue produzir outra coisa, sobretudo quando o peditório para a redistribuição aumenta, mas a riqueza criada cresce cada vez menos.

No The Times de ontem em "Youngsters are a bigger loss than non-doms":
"It breaks my heart," says a friend, "my son only went for a year to work and surf in Sydney." Now the recently - qualified doctor has bought a flat in Australia and got engaged, and his mother fears she will see him only once a year. Another friend's child is finishing his postgraduate architectural studies in Sweden and has already been offered myriad jobs. He's not coming home. Nor is Mia, who has become a baker in Denmark, or Matt, who is working as an engineering consultant in Singapore, while his younger sister has set up a booming pet-grooming business in Poland.
...
entrepreneurial, creative and aspirational, who were departing "in droves". These aren't the 940,000 Neets (not in education, employment or training) or the quiet quitters who want to do the minimal amount from under a duvet, but the competitive, skilled, driven and much-needed future taxpayers who are fleeing Britain because they don't like being derided for aspiring to a high standard of living and a better life than their parents. They want a fair chance of being rewarded if they work hard.
...
According to the Adam Smith Institute, 28 per cent of 18 to 30-year-olds said they were actively planning or had seriously considered emigrating, worried about being overtaxed, underhoused and undervalued. The British Council last year reported that nearly three quarters of that age group in the UK would consider living abroad, an all-time high this century."

Já aqui escrevi várias vezes que os políticos vão, mais tarde ou mais cedo, querer uma guerra para justificar um reset. A outra alternativa será um "Afuera".


 

Um momento de especulação



O que tem mudado no contexto externo de uma empresa como a Sicasal? Quando se pensa a sério, vê-se um oceano de mudança profunda e desfavorável. 

O retalho alimentar transformou-se no actor dominante, com o hiperdomínio das marcas próprias do Continente, Pingo Doce e Lidl. Estas marcas ocupam hoje quase todas as categorias de charcutaria e carnes transformadas, impondo preços muito baixos e margens reduzidas aos fornecedores. Apenas empresas de grande escala conseguem acompanhar esta pressão, deixando empresas médias como a Sicasal numa posição estruturalmente frágil.

Ao mesmo tempo, os custos operacionais subiram de forma significativa: matérias-primas voláteis, energia extremamente cara num sector dependente do frio e da refrigeração, mão de obra mais escassa e dispendiosa e requisitos sanitários cada vez mais exigentes. Quando os preços de venda estão comprimidos e os custos sobem simultaneamente, a margem desaparece rapidamente.

Por exemplo, a nível da matéria-prima:
"O grau de orientação exportadora de Portugal para a carne de suíno em 2020 situou-se nos 20,1%, longe dos 8,1% do ano 2010."
A concorrência internacional agravou ainda mais a situação. Espanha consolidou um sector de carnes transformadas com empresas muitíssimo maiores, custos unitários mais baixos e logística integrada, invadindo com facilidade o mercado português. O consumo também mudou: menos carne de porco, maior preocupação com a saúde, procura por produtos clean label e substituição por alternativas mais baratas. As empresas dependentes de produtos tradicionais ficaram especialmente expostas.

O resultado é um ambiente externo muito mais hostil, em que a escala, a eficiência e a capacidade de adaptação deixaram de ser vantagens competitivas — tornaram-se pré-requisitos mínimos para sobreviver.

O último parágrafo, para quem conhece este blogue, abre a porta para a alternativa: fugir desta pressão, fugir da comoditização. 

Enquanto escrevo isto, o olhar foge-me para um segundo ecran onde leio o último parágrafo do artigo "Britain must remove the pension triple lock", publicado no FT de 26 de Novembro:
"The longer we delay taking action, the more we bake in future cost pressures that will be harder to unwind."

É a estória do campo de possibilidades que encolhe, e dos graus de liberdade que se perdem, 

O contexto externo muda e, muitas vezes, como neste caso, de forma muito desfavorável, mas as empresas podem mudar e adaptar-se ao novo mundo. O problema é que mudar implica sair da zona de conforto. Ainda esta semana, numa reunião, falávamos sobre reconhecer a dor, os sintomas que nos dizem que a empresa tem um problema, quando um dos participantes nos alertou para algo mais subtil, para a facilidade com que mascaramos os sintomas com "medicamentos" com expedientes legais, mas estrategicamente mortais. Sair da zona de conforto é, por exemplo, perceber que há um potencial que parece estar a ser perdido, mas explorá-lo implica mudar algo na identidade da organização. 

A Sicasal chegou a um ponto em que continuar a jogar o jogo do “barato e massificado” deixou de ser uma opção viável. O mercado mudou mais depressa do que a empresa, e a combinação de pressão das marcas próprias, da concorrência espanhola, de custos elevados e de alterações nos hábitos de consumo empurrou o negócio para margens cada vez mais frágeis. Mas isso não significa que não haja um caminho possível — apenas que esse caminho já não passa pela lógica tradicional de volume. Passa, sim, por foco, diferenciação e valor acrescentado.

O primeiro passo teria sido — e ainda pode ser — olhar de frente para os números. Uma análise rigorosa, categoria a categoria, cliente a cliente, para perceber onde se ganha realmente dinheiro e onde se perde. Muitas empresas industriais carregam consigo um “cemitério de produtos”: referências que ocupam capacidade, geram complexidade e não trazem margem. Eliminar 20 ou 30% desses produtos liberta caixa, simplifica as operações e devolve controlo ao planeamento. Sem esta limpeza inicial, qualquer transformação assenta em areia. Recordo sempre o regresso de Jobs à Apple.

Depois, a Sicasal teria beneficiado de reduzir drasticamente a dispersão do portefólio. Em vez de tentar agradar a todos os canais, deveria ter construído três pilares claros: 
  • uma linha B2B e food service, onde conta a consistência, o corte, o porcionamento e a fiabilidade;
  • uma gama premium ancorada na tradição portuguesa, no porco preto e em produtos curados com identidade; e 
  • uma linha moderna, clean label, menos sal e rótulos curtos, capaz de competir em nichos do retalho onde se valoriza saúde e qualidade. Este tipo de foco não só cria valor, como devolve sentido à marca.
Finalmente, a Sicasal teria de desenvolver os mercados onde pode ser escolhida pelo que é, e não pelo preço por grama: exportação selectiva para comunidades portuguesas e nichos mediterrânicos; parcerias com chefs, hotéis e cantinas; presença em retalho especializado; e um relacionamento mais forte com o canal Horeca, onde o serviço e a adaptação contam mais do que o preço.

Eventualmente, será necessário algum tipo de investimento para aumentar a eficiência e reduzir custos operacionais.

A tese estratégica é simples: a Sicasal não tem futuro como fornecedora de produtos baratos num mercado dominado pelas marcas brancas. O futuro, se existir, está naquilo que ainda só ela pode ser: portuguesa, fiável, adaptável, com identidade e com valor. Menos volume, mais margem. Menos dispersão, mais foco. Menos sobrevivência diária, mais construção deliberada de uma empresa que sabe exactamente para quem quer produzir — e porquê. Claro, a Raporal e a Purdue ilustram que é preciso ter paciência estratégica e o que acontece quando não se a tem.

Mas isto é reflexão de um outsider que vê as coisas de longe e filtradas por aquilo que chega aos jornais.

BTW, isto fez-me recuar ao dia 10 de Setembro de 2001, seguia no meu carro vindo do Norte para realizar uma auditoria de certificação na cidade de Montijo. Ao chegar à cidade, ficou-me gravada na memória uma série de ruínas industriais associadas ao sector do porco. Certamente, já resultado da adesão à CEE e de algumas alterações na distribuição grande em Portugal.

Esta semana ouvi mais um episódio de Fall of Civilizations, desta feita sobre a queda do império persa. Já nos últimos 30 minutos, acompanhamos a entrada do exército macedónio comandado por Alexandre na Ásia Menor, território pertencente ao império persa. Os persas perguntaram aos mercenários gregos que tinham ao seu serviço como combater os macedónios. Estes disseram-lhes, não tentem um confronto directo. Eles estão tarimbados por anos e anos de guerras ao serviço de Filipe para unificar a Grécia, e vocês não têm uma guerra a sério há muito tempo. E depois deram a solução: queimem-lhes a logística, incendeiem as cidades e campos que eles vão pilhar para se alimentar. 

E os persas horrorizados responderam:
- Queimar as nossas cidades?! Destruir as nossas cidades?! Não, isso não. 

A maravilha do império persa, que era a sua rede de estradas, fez com que os macedónios limpassem o império em pouco tempo.

quinta-feira, novembro 27, 2025

Curiosidade do dia

Mão amiga mandou-me este infográfico:


Obrigado Tó, Pedro e Marina.


Um momento para pensar com calma

A propósito de "Grupo de Guimarães vai adaptar fábrica para produzir botas para militares"

Há notícias que pedem celebração imediata e outras que pedem reflexão serena. A entrada da AMF Safety Shoes no segmento militar é, sem dúvida, um sinal de dinamismo industrial e ambição: uma empresa de Guimarães capaz de produzir 900 mil pares por ano, que exporta 90% da sua produção, e que quer entrar num mercado onde a Europa está a reforçar orçamentos de defesa e em que existe procura real. 

Mas há momentos em que vale a pena parar e fazer duas perguntas difíceis — não por pessimismo, mas por responsabilidade estratégica.

Será que este segmento faz sentido para esta empresa?

O mercado militar é muito diferente do mercado de calçado técnico para a indústria. No papel, trata-se de uma oportunidade: volumes elevados, estabilidade contratual, visibilidade europeia. Mas na prática, o processo de aquisição militar assenta frequentemente num princípio simples: ganha quem oferece o preço mais baixo. (recordar a cena do filme Armageddon)

E isto levanta uma questão essencial: Será que o cliente militar está disponível para pagar aquilo em que esta empresa é realmente boa?

Ou será que o processo de concurso tenderá a esmagar o valor acrescentado para que caiba num preço mínimo?

É uma dúvida legítima.

Num segmento onde a diferenciação técnica existe, é importante perceber se esses factores são valorizados ou se, no fim, a variável dominante é o preço unitário.

Se o valor não for pago, a excelência deixa de ser vantagem e torna-se apenas um custo.

Será que faz sentido fazer este produto na mesma fábrica que produz séries pequenas e inovadoras?

Outra questão que merece ponderação é a mistura de lógicas industriais.

Produzir botas inovadoras, com séries pequenas, ciclos curtos, experimentação rápida e grande flexibilidade, é uma coisa. Produzir equipamento militar para concursos públicos, com volumes elevados, especificações rígidas e margens apertadas, é outra coisa completamente diferente. A notícia refere que a empresa prevê “duas linhas diferenciadoras: uma com inovação e outra mais tradicional". Isso mostra que a própria AMF já reconhece a necessidade de separar as lógicas produtivas. A questão é saber se essa separação será suficiente.

Porque misturar operações com ADN tão distinto pode gerar tensões reais (e recordo o velho Skinner e a sua plant within a plant:

  • competição interna por recursos;
  • prioridades contraditórias;
  • custos fixos mais elevados do que o segmento militar suportará;
  • risco de a linha “inovadora” perder agilidade;
  • risco de a linha militar contaminar a cultura industrial com uma lógica de custo mínimo.

Não é raro ver empresas excelentes a perderem o foco quando tentam servir dois mundos com expectativas e modelos económicos incompatíveis.

Não é um problema técnico — é um problema estratégico.

Misturar estas duas lógicas (calçado inovador e calçado militar) na mesma linha, com as mesmas pessoas, os mesmos gestores, as mesmas métricas e a mesma cultura operacional é pedir problemas.

Skinner ensinou-nos que uma fábrica tem de ser ‘focused’. Quando duas lógicas industriais coexistem — inovação de alta variedade e concursos públicos de grande volume — a empresa entra num conflito interno permanente. A solução não é misturar; é separar. Seja fisicamente, seja criando PWPs: mini-fábricas com identidade própria, métricas próprias e cultura própria.

Uma reflexão final

Nada disto diminui o mérito da AMF Safety Shoes.

Antes, pelo contrário: quando uma empresa chega onde esta chegou, merece exatamente este tipo de reflexão séria — porque está numa posição em que decisões estratégicas moldam décadas, não anos.

O objetivo não é travar a ambição, mas garantir que ela assente sobre três perguntas que todos os líderes responsáveis devem fazer:

Este cliente valoriza realmente aquilo que nos diferencia?

Este segmento tem margem para pagar o nosso nível de competência?

É prudente misturar lógicas industriais tão diferentes sob o mesmo tecto?

Se a resposta for sim — óptimo.

Se a resposta for talvez, vale a pena investigar.

Se a resposta for não, é sinal de que a empresa precisa afinar a sua direcção antes de avançar.

Decisões estratégicas só são fortes quando nascem da dúvida certa.

E estas duas dúvidas, neste caso, não são apenas legítimas, mas também essenciais. Mas isto é reflexão de um outsider que vê as coisas ao longe e filtradas por aquilo que chega aos jornais.


quarta-feira, novembro 26, 2025

Curiosidade do dia



Ontem, o The Times publicou quatro artigos espalhados pelo jornal que ajudam a construir uma imagem de uma certa Europa.

Na primeira página a notícia, "Nuclear 'fish disco' to save one salmon a year" de que para salvar um (1) salmão por ano ...
"More than £700 million is being spent at Hinkley Point C nuclear power station on environmental measures expected to save just 0.083 salmon and
0.028 sea trout per year."
Na página 2, "Half of Britons back scrapping HS2 to plug budget shortfall". Na página 23, a coluna de opinião de William Hague, "Europe risks going the way of imperial China". Na página 25 outra coluna de opinião, "We shouldn't expect democracy to last for ever".

De vez em quando, vários sinais isolados começam a alinhar-se como peças de um puzzle maior. Estes quatro artigos formam exactamente esse padrão: a Europa está a mostrar sintomas de um sistema que perdeu vitalidade, ambição e capacidade de execução.

O HS2, que prometia revolucionar o transporte no Reino Unido, tornou-se num símbolo perfeito da incapacidade europeia de concluir obras estratégicas. Derrapagens orçamentais superiores a 100%, atrasos de décadas, cortes sucessivos e um alcance final muito aquém da ambição inicial. Não é apenas uma linha ferroviária que falhou — é a manifestação física de um continente preso a procedimentos, hesitações e ao medo de decidir. O HS2 não é um acidente. É a metáfora perfeita de um continente que debate tudo, decide pouco, executa quase nada ao ritmo do mundo moderno.

Ao mesmo tempo, William Hague alerta que a Europa corre o risco de seguir o destino da dinastia Qing: uma potência cultural e económica que, confiando demasiado no passado, ignorou a revolução tecnológica que se aproximava. Hoje, a Europa olha para os EUA e a China a correrem em IA, defesa, energia, biotecnologia e software... enquanto continua absorvida em divisões internas, regulações infinitas e ilusões de conforto.

James Marriott acrescenta a última peça do quadro: a democracia europeia, que nos habituámos a ver como permanente e sólida, está a envelhecer. A confiança pública deteriora-se, o cinismo alastra, as fissuras geracionais aumentam e o próprio sistema parece incapaz de produzir líderes com visão. Não estamos perante um colapso súbito; estamos perante a erosão lenta de um modelo que já viveu melhores dias.

Cada artigo, a seu modo, aponta para o mesmo ponto fraco:

A Europa comporta-se cada vez mais como um continente que já não controla plenamente os seus próprios mecanismos de funcionamento. 

Não controlamos a tecnologia que usamos, nem a defesa que nos protege.
Não controlamos grandes obras públicas nem orçamentos que alguma vez fiquem dentro do previsto.
Não controlamos a demografia que sustenta o futuro, nem a capacidade de executar políticas que realmente mudem vidas.

E Portugal é um microcosmo dessa mesma fragilidade. Quando olhamos para o nosso país, vemos sintomas idênticos em escala nacional: um SNS em que médicos tarefeiros conseguem facturar milhões num par de fins de semana; centros de saúde que registam dez mil imigrantes “por engano”; sistemas informáticos incapazes de detectar abusos; regras que ninguém fiscaliza; procedimentos que não funcionam; responsabilidades que se diluem. Uma espécie de “bar aberto” institucional, onde todos sabem que há falhas, mas ninguém assume o controlo.

O problema não é apenas operacional — é civilizacional.

É a perda lenta, mas visível, da capacidade de governar, vigiar, corrigir, planear e garantir que o sistema funciona para quem dele depende.

E talvez o mais grave seja isto: tal como na Europa, também em Portugal estamos a perder a confiança dos cidadãos. As pessoas sentem que o Estado já não controla nada — nem os seus próprios processos, nem as suas próprias fronteiras, nem os seus próprios serviços.

É a sensação de um país e de um continente que vive da memória do que já foi capaz de fazer, enquanto o mundo — e os problemas — avançam muito mais depressa do que nós conseguimos reagir.

Tem um Frankenstein?

 Há tempos, usei esta imagem:


E outra parecida, para promover umas sessões de coaching sobre sistemas de gestão. Na "landing page" escrevi:
"Procedures written years ago — by people who've already left.
Too much paperwork nobody reads.
Too little connection between what’s written and what’s done."
Era — e continua a ser — o retrato fiel de muitas organizações.

Os procedimentos foram escritos aquando da implementação inicial do Sistema de Gestão da Qualidade: uma espécie de "instalação 1.0". O tempo passou, o contexto mudou, as pessoas que conheciam o sistema saíram, e aquilo que era claro e útil começou a encher-se de pequenas camadas: anexos, remendos, excepções, atalhos, práticas antigas que ninguém usa, mas que continuam lá, fossilizadas.
"Layering over, not uninstalling."
Acrescenta-se. Nunca se remove. Até que, imperceptivelmente, o sistema transforma-se num monstro: pesado, incoerente, difícil de seguir, impossível de explicar.

A imagem do Frankenstein é perfeita exactamente por isto: cada parte foi, em algum momento, adicionada com a melhor das intenções. Mas o resultado final? Uma criatura desajeitada, lenta, disforme e incapaz de cumprir o papel para o qual foi criada.

A coincidência que não é coincidência. Na passada segunda-feira, Roger Martin publicou “Revisiting Management Systems – The Nervous System of Strategy”.

E é curioso como o seu argumento é exactamente o que tenho visto e escrito ao longo dos anos — mas dito com a clareza conceptual que só ele tem. Martin explica que os sistemas de gestão, quando não são mantidos, acumulam camadas — regras, procedimentos, políticas e artefactos que já não se encaixam entre si:
“Management systems tend to accumulate over time like barnacles on the hull of a ship.”
Barnacles. Cracas presas ao casco de um navio.
E tal como as cracas tornam o barco mais lento, instável e ineficiente, os sistemas de gestão cobertos de resíduos do passado transformam-se em máquinas de fricção. Não ajudam — atrapalham.
O resultado?

Desvio estratégico. Lentidão. Capacidade de execução reduzida. E uma sensação difusa de que a organização está sempre atrasada, sempre presa, sempre a entrar em reuniões para discutir o que "já devia estar a funcionar".

Martin resume numa frase aquilo que qualquer consultor, auditor ou gestor sente todos os dias:
"In this way, if the WTP/HTW choice is the heart of strategy, then MHC are the muscles and EMS its nervous system — the network of signals, incentives, and feedback loops that translate strategic intent into coherent, day-to-day action."
Ou seja: O sistema nervoso tem de fazer com que os músculos trabalhem ao serviço do coração.

Traduzido para a realidade das organizações:
  • O sistema tem de reflectir a realidade, não uma ficção confortável.
  • O sistema tem de orientar as decisões, não de as bloquear em nome de uma conformidade bacoca.
  • O sistema tem de simplificar a acção, não de adicionar camadas de complexidade.
  • O sistema tem de ligar a execução ao que realmente interessa — a estratégia, o propósito, a criação de valor.
Um SGQ que não faz isto é apenas papel. Papel morto. Papel que assusta, se arrasta e olha para nós com aquele ar de Frankenstein institucional.

O que Martin chama “barnacles”, eu vejo todos os dias como:
  • procedimentos com 20 páginas quando bastariam 2; 
  • instruções escritas há 10 anos por pessoas que já nem lembramos;
  • práticas que mudaram no chão de fábrica mas continuam no papel;
  • auditorias internas feitas como checklists automáticas;
  • equipas que já não acreditam no sistema porque o sistema já não acredita nelas.
No fundo, tanto Martin como eu estamos a dizer a mesma coisa: Um sistema de gestão deve ser vivo. Respirar.
Atualizar-se. Acompanhar a mudança.
Ser uma ferramenta de clareza — nunca de confusão.
E se isso não está a acontecer?
Então não tem um sistema de gestão.
Tem um Frankenstein.

terça-feira, novembro 25, 2025

Curiosidade do dia

O WSJ de ontem trazia um artigo interessante, "Two Sisters: How AI Affects Their Different Career Paths".

"The Texas sisters' divergent career paths reflect the shifting dynamics: White-collar jobs that once seemed solid are no longer, and some skilled blue-collar work is looking like a safer bet."

O artigo conta a história de duas irmãs americanas, Sophia e Hannah Talley, cujas carreiras estão a ser afectadas, de forma oposta, pela evolução da inteligência artificial.

  • Sophia, 22 anos, queria ser escritora de não-ficção. Entrou no mercado de trabalho como editora freelancer, mas enfrenta grande dificuldade: muitos trabalhos de escrita, edição e comunicação estão a ser automatizados ou substituídos por ferramentas de IA. Envia CVs, faz entrevistas, mas suspeita que está a perder oportunidades porque as empresas filtram candidatos com IA e descartam perfis "não ideais". Está a ponderar obter uma certificação em Al prompt-writing como "fallback".
  • Hannah, 25 anos, saiu da universidade para se tornar mecânica automóvel. Os mecânicos, ao contrário de muitas profissões de escrita, ainda têm pouca exposição à automação: apenas 19% das tarefas são automatizáveis. Trabalha na Firestone, ganha cerca de 53 mil dólares, tem 401(k), formação em serviço e oportunidades reais de progressão. Clientes chegam com ideias e "diagnósticos" gerados por IA, mas ela nota que "a IA não tem mãos".

Os pais, ambos frequentes utilizadores de IA no trabalho, apoiam as duas filhas, mas reconhecem que o impacto da IA não é igual para todos. A mensagem final do artigo é que a IA está a redefinir carreiras, abrindo portas para algumas e fechando portas para outras — e que as pessoas precisam de se adaptar, mas nem todas as carreiras são igualmente vulneráveis.

O caso da Sophia mostra um fenómeno já visível em Portugal: jovens qualificados em áreas de escrita, comunicação, marketing ou jornalismo a entrar num mercado saturado — e agora tecnologicamente substituível. Enquanto isso, as profissões técnicas (EFA, IEFP, cursos profissionais) têm escassez de candidatos.