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quinta-feira, maio 02, 2024

Think again!

Ao longo dos anos aqui no blogue tenho chamado a atenção para o interessante que é perceber que existe mais variedade de desempenho dentro de um mesmo sector de actividade económica do que entre sectores de actividade económica. Esta realidade chama a atenção para a importância da estratégia, e para o absurdo de tratar cada sector de actividade económica como um bloco homogéneo. Recomendo a leitura deste artigo "A long-term look at ROIC", com quase 20 anos, e apreciar a Exhibit 3 - Intra-industry variations in ROIC.

Este tipo de gráficos sempre me levaram a escrever coisas como a que se segue:
"Uma das coisas que aprendi em 2008 foi a da variabilidade da distribuição de produtividades. Existem mais variabilidade da produtividade entre as empresas de um mesmo sector de actividade económica do que entre sectores de actividade económica. Percebem as implicações disto? No mesmo país, com as mesmas leis, com o mesmo povo, dentro de um mesmo sector, a variabilidade da produtividade é enorme. E isto quer dizer que o factor mais importante para a produtividade é o ADN que está numa empresa."

Isto é verdade, mas iludiu-me até ter lido "The Visionary Realism of German Economics: From the Thirty Years' War to the Cold War" de Erik S. Reinert. 

Voltemos à Exhibit 3. Por exemplo, as melhores das melhores empresas de "Materials" estarão sempre com um retorno inferior às empresas abaixo da média numa série de sectores na parte superior da tabela. Reinert, possuidor de uma vasta colecção histórica obtida em alfarrabistas por esse mundo fora, escreveu:

"As was so obvious to American economists around 1820, a nation - just as a person - still cannot break such vicious circles without changing professions."

Muitos quando olham para a baixa produtividade portuguesa rematam como receita:

  1. É preciso promover o crescimento, a fusão das PMEs.
  2. É preciso formar os empresários.
  3. É preciso investir em tecnologia.
  4. É preciso um simplex conjugado com uma baixa de impostos para as empresas.
Ou seja, nunca põem a hipótese de que o país precisa de fazer coisas diferentes, não apenas melhorar o que já faz.

Imaginem que estão a pensar numa empresa que faz parte de um daqueles sectores económicos no fundo da Exhibit 3. Acham que a receita acima com as suas 4 medidas vai ajudar a aumentar a produtividade?









Claro que sim!

Acham que vai permitir dar o salto de produtividade que é preciso? Basta olhar para estes números do Pordata:

Claro que não!

O que é que isto quer dizer? 
"a nation still cannot break such vicious circles without changing professions"

Por isso é que escrevo aqui no blogue sobre os mastins dos Baskerville. A maioria das pessoas culpa os empresários existentes pela baixa produtividade do país. Nope! Eles não são pagos para isso, eles são pagos para fazer o melhor que podem e sabem com as suas empresas. Outros culpam-nos pela sua baixa escolaridade (o link sugerido não os culpa, só comunica o facto), mas acaso continuamos sob a Lei do Condicionamento Industrial? Se são maus, porque é que outros com mais escolaridade não os retiram do mercado? E volto ao texto de Reinert:

"the poor do not have enough education (ignoring the fact that you cannot profitably invest in education that improves your income as shoe-shiner or dish-washer)"

Os mastins não ladraram. E o que nos devia interpelar são as empresas inexistentes, essas é que nos levariam a mudar de profissão. Por que é que elas não aparecem?

Por exemplo, pensem nos trabalhadores de Felgueiras que troquem o calçado pela Coloplast. Como ficará a sua produtividade?

Sei que me repito, mas o tema tem de ser martelado até à exaustão, comparem o desempenho dos dois clusters da economia irlandesa. Acham que o salto de produtividade foi conseguido à custa de capital e know-how irlandês? Think again!

Fico sinceramente sensibilizado por sentir que até João Galamba já percebeu que o salto só será conseguido com capital e know-how de fora, mas não vai ser fácil... afinal ninguém diz ao filho de 5 anos:

- A festa de Natal da tua salinha foi uma valente porcaria!



segunda-feira, abril 15, 2024

Hype versus orgânico

 Primeiro, li "'You can't cheat the fundamentals': Why Prime has been reduced to the bargain bin", por causa de um tweet de Rory Sunderland.

O pico inicial de vendas, impulsionado pelo hype e pela novidade, muitas vezes não é sustentável. À medida que a novidade passa, o mesmo acontece com o interesse do consumidor se o produto não estabelecer uma posição sólida no mercado ou não atender às necessidades contínuas do consumidor. Ao contrário das marcas que crescem gradualmente e investem no estabelecimento de mercado a longo prazo, as marcas impulsionadas pelo hype podem não investir na infraestrutura e no marketing necessários para sustentar o crescimento inicial. Marcas estabelecidas como a Red Bull demonstraram que uma estratégia de expansão de mercado gradual e controlada pode levar ao sucesso sustentado.

O declínio da Prime no seu segundo ano ilustra que, apesar de um início forte, os princípios fundamentais do marketing - como disponibilidade, aposta contínua de marca, preços correctos e propostas de produtos fortes - são essenciais para o sucesso a longo prazo. Os produtos que aumentam rapidamente em popularidade devido a tendências ou promoção de influenciadores também podem cair rapidamente. Cautela com os modismos.

Depois, li "Calçado: Portugal garante à Veja sucesso no 'slow fashion'" e encontrei uma estratégia oposta à da Prime:

"Em 2005, é lançada a marca, com uma "produção pequena, sem investidores e sem publicidade", uma estratégia que se mantém até hoje, apostada em crescer sempre "de forma sustentável, passo a passo, a partir do passa a palavra, sem pressas". E sem pressas, passaram quase 20 anos, período em que vendeu já mais de 12 milhões de pares de sapatilhas,

...

E como se ganha uma dimensão destas sem publicidade, sem stocks e sem investidores? "Com determinação, com tempo e encontrando parceiros bons. Não temos fornecedores, temos parceiros. E vivemos do passa a palavra. Vivemos num tempo em que todos estão sempre com muita pressa e a publicidade existe para quem quer crescer depressa. Nós não temos essa pressa. Produzimos pouco e crescemos passo a passo, de forma saudável. Acabou o modelo que quer? Daqui por seis meses há mais. E, por isso mesmo, não queremos investidores, este é o nosso projeto de vida, queremos ser livres", sublinha o empresário."

segunda-feira, outubro 16, 2023

Backcasting scenarios

Há anos que faço isto e só agora percebi que havia uma designação oficial "backcasting scenarios".

Viajar até ao futuro, ver como é que ele é, para depois retornar ao presente e construir o caminho até esse futuro.

Recordo:
"O futuro é a base do significado, é de onde vem o projecto que alguém tem para si próprio ... o futuro, o projecto que temos de futuro, o entendimento genuíno, instintivo, intuitivo que dele fazemos é o que nos faz ser o que somos hoje."

"Agora, imaginem a seguinte situação, avaliamos, documentamos, retratamos, descrevemos uma realidade actual. E depois, viajamos mentalmente no tempo, e imaginamo-nos num tempo, num estado futuro. Um estado futuro com uma particularidade interessante, é um estado futuro desejado, não é um local de descoberta, é um local de destino conhecido. Esta situação é diferente, sabemos onde estamos, e sabemos onde queremos chegar no futuro. Então, colocados mentalmente no futuro, vamos começar a “puxar” a nossa realidade, para que ela um dia, se transforme na realidade futura desejada.
...
Quem se coloca mentalmente no futuro gera uma situação paradoxal (será?). O futuro desejado (o efeito n), a consequência, o resultado, transforma-se numa causa do presente!!!

Ou seja: Assim, há que equacionar o futuro desejado onde queremos chegar, para começar a actuar sobre o presente, de forma planeada, de forma deliberada.

“Isto faz-nos constatar de que a minha vida de agora, presente ou actual e, portanto, o meu “eu” agora, actual e presente é o que é graças a um meu eu futuro, à minha vida futura e não o contrário.”"

terça-feira, julho 19, 2022

O fim da globalização (parte VIII)

Parte VII

Continuo a minha leitura de "The End of the World is Just the Beginning" de Peter Zeihan.

O autor acredita que com o fim da Ordem Americana imposta desde o pós-guerra o mundo aberto em que vivemos vai desaparecer. Uma das hipóteses do autor é a generalização da pirataria que se vê na costa da Somália, e o regresso de corsários ao serviço de estados. Primeiro o autor descreve os circuitos do petróleo e do gás natural, depois ilustra como as energias renováveis nunca conseguirão substituir nas décadas mais próximas as energias fósseis. É impressionante, os políticos mandam bitaites e fazem grandes proclamações. O autor limita-se a fazer contas e a demonstrar que não existe nem lítio nem cobalto capaz de alimentar essas ilusões. Agora estou a assistir a uma descrição das fontes, e de quem processa o aço, o cobre, o alumínio, o lítio, o molibdénio, o cobalto, a platina, o ouro, a prata, terras raras, e ...

O autor bate sempre na tecla que muitos países vão sentir-se tentados a novamente voltarem à tentação imperial para conseguir garantir o fornecimento desses materiais.

Na minha mente surgiu entretanto uma palavra da segunda guerra mundial: ersatz.

Muita investigação vai ter de ser desenvolvida na Europa para arranjar alternativas a todos aqueles materiais que a economia actual precisa, mas não existem na Europa. Imagino moléculas orgânicas a substituírem os materiais originais.

sábado, dezembro 18, 2021

"Se correr o bicho pega Se ficar o bicho come."


Na passada quinta-feira tive mais uma conversa oxigenadora. O tema foi o capítulo 8 de "Managing the Unexpected - Sustained Performance in a Complex World" de Karl E. Weick e Kathleen M. Sutcliffe.  Um capítulo sobre a cultura das organizações, e da sua contribuição para a fiabilidade organizacional.

Os autores usam a Toyota como exemplo de como uma cultura de sucesso gera o insucesso.

Recordámos o primeiro princípio das organizações resilientes, a preocupação com a falha, por causa da atenção aos indícios. Um indício investigado é muitas vezes um prejuízo evitado e algumas vezes uma catástrofe evitada. O desafio é, como estar atento aos indícios?

Por um lado, as empresas com as suas estruturas super magras vivem a resolver os problemas de hoje e as consequências dos problemas de ontem, imaginem dizer-lhes que têm de estar atentas aos indícios. Mandam-nos dar uma volta.

Muitos sectores transaccionáveis vivem tempos de euforia, estão a exportar o que podem, e se não exportam mais é porque não têm matérias-primas ou capacidade produtiva livre. Ou seja, tudo parece correr bem. Bom para as empresas. Desejo-lhes o melhor. Se é esta a situação então porquê preocuparem-se?

Helena Garrido lembrou-nos recentemente destes números:

"O salário mínimo terá tido em 2022 um aumento de 39,6% em relação a 2015, passando de 505 para 705 euros. A produção portuguesa deverá crescer, no mesmo período, 12,4%, levando em conta os dados e previsões da Comissão Europeia."

Não seria agora a melhor altura para agarrar o problema, o desafio da produtividade?

Existe um suposto Forum para a Competitividade que tem um presidente que é useiro e vezeiro neste tipo de afirmações:

"Como é que possível sermos tão mal governados que temos pessoas mais qualificadas e a produtividade não sobe? 

A produtividade sempre foi o nosso calcanhar de Aquiles... [Moi ici: Comenta o entrevistador]

E por que não sobe? Dizíamos que era por falta de qualificação das pessoas, agora as pessoas são mais qualificadas e a produtividade continua a não crescer.

É culpa de quem? [Moi ici: Pergunta o entrevistador]

É culpa do sistema todo. Quem gere as empresas vai fazendo o que pode dentro do sistema que existe. É cada vez mais difícil fazer qualquer coisa por questões ligadas à burocracia, justiça, fiscalidade, alterações constantes de regras e de legislação de trabalho. Há cada vez mais mais regras para cumprir."

Tem o locus de controlo no exterior, o que é terrível num presidente qualquer. A produtividade das empresas que existem não sobe por causa do que é exterior às empresas ... sem palavras.

E volto à pergunta: Não seria agora a melhor altura para agarrar o problema, o desafio da produtividade?

Contudo, sucesso é, muitas vezes, sinal de descanso. Por isso, o sucesso de hoje cria as condições do falhanço de amanhã. Lembrei-me então de 1970 e dos anúncios na televisão às canetas BIC. “BIC cristal para uma escrita normal, BIC laranja para uma escrita fina”. Na altura, usava na escola uma caneta de tinta permanente e ao ver as canetas BIC exclamava UAU. Hoje, fanático por canetas e marcadores não tenho nenhuma caneta BIC. O que hoje é UAU, amanhã é boring.

E não conhecer o gráfico de Kano é deixar que a corrente nos leve para onde ela quiser e não para onde queremos ir. 

Agora veio-me à cabeça aquela frase de uma canção "Se correr o bicho pega Se ficar o bicho come." Ou são os concorrentes que vão comer mercado, ou é o governo a comer margem. Ficar parado é a morte do artista,  o empobrecimento geral a que estamos habituados. Ficar parado à espera do Deus Ex Machina que salva os coitadinhos não me parece a melhor alternativa. Há que arregaçar as mangas e fazer pela vida.

quinta-feira, novembro 18, 2021

Se não fosse triste, era cómico!!!

Imaginem estar a falar com um patrão do século XX, do mais reaccionário que consigam imaginar, pode mesmo ser um patrão mitológico que só existe nos livros de contos de terror de uma qualquer central sindical.

E vocês perguntam:
- Então, como vai a produtividade da empresa?

E vem a resposta, um rosário de queixas:
- Não me fale disso!!! Malandros dos meus trabalhadores, são uns molengas! Perdem tanto tempo no café, trabalham devagar, faltam muito. Enfim!!!

O que é que você, leitor, pensa de um discurso destes? Concorda? Discorda?

Guarde a resposta para si e leia este título "Precisamos de produzir mais? É hora de trabalharmos menos". Ui! Este artigo é um espectáculo!!!
"Acredito que pequenas mudanças nas rotinas do tecido empresarial português seriam importantes para aumentar a produtividade (e, por inerência, os salários e os lucros), mas sejamos sinceros e deixemo-nos de visões utópicas. Alguém acredita que, sem incentivos, um trabalhador diminuísse o tempo e frequência da pausa do café e/ou para fumar? Ou que, durante o período normal de trabalho, passe a resistir às interrupções a que as redes sociais “obrigam” com as constantes notificações? 

Portanto, das duas, uma: ou o incentivo para melhorar os níveis de produtividade é monetário ou é ao nível do “salário emocional”." [Moi ici: A minha interpretação do que o autor está a comunicar é - a produtividade é baixa porque os trabalhadores perdem tempo na pausa do café e/ou para fumar, ou a escrever no FB. E mais, são uns autênticos mercenários, só melhoram a produtividade se forem incentivados a isso. Pode não ser numa linguagem à bruta, ao estilo do patrão mitológico, mas é o mesmo racional]

"...

Não restam dúvidas que um aumento retributivo (v.g. em função da produtividade) seria um incentivo decisivo para um trabalhador produzir mais.

...

Bom, falemos agora do “elefante na sala”. Já há muito tempo que múltiplos diagnósticos de uma miríade de especialistas identificaram o principal problema do nosso país: a produtividade.

Os dados da OCDE mostram que o país está entre os que têm uma média de horas trabalhadas por ano mais elevada, mas fica no fundo da tabela no que toca ao valor do produto interno bruto (PIB) por hora trabalhada. [Moi ici: Verdade. Mas agora preparem-se para a solução do autor]

Verifiquemos, portanto, os números, porque, esses, não mentem!

Por cada hora que trabalhamos em Portugal produzimos, em média, cerca de trinta euros. No Luxemburgo, por cada hora que se trabalha — e trabalha-se bem menos horas do que por cá — produz-se mais de oitenta euros (logo, mais do dobro e quase o triplo…). E se dúvidas ainda restam, a diferença de produtividade entre os mais e os menos “trabalhadores” é tão notória que um trabalhador luxemburguês que pare de trabalhar à quinta-feira à hora de almoço já produziu mais que um trabalhador português que cumpre uma semana inteira de trabalho. [Moi ici: Faz lembrar as contas de Vasconcellos em 2007 - "Se os nossos compatriotas viessem a Portugal fazer o nosso trabalho, entravam em fim-de-semana às 17 horas de terça-feira ou em férias anuais a 15 de Maio até 2 de Janeiro." Se as pessoas percebessem o absurdo do que escrevem... Vasconcellos dizia que os portugueses no Luxemburgo se viessem a Portugal fazer o trabalho dos portugueses em Portugal entravam em fim de semana às 17h de terça-feira. Este autor não expõe o seu erro de forma tão clara quanto Vasconcellos, mas comete o mesmo erro. Falaremos dele adiante]"

...

O facto de trabalhar menos horas permitir, em tese, aumentar a produtividade é, para mim, a pedra de toque. É uma relação direta e que não levanta dúvidas aos especialistas. Nessa sequência, só posso acreditar que testar a redução dos horários de trabalho, seja através da semana de quatro dias ou da diminuição de horas de trabalho diárias, poderia realmente mostrar-se um remédio eficaz para a produtividade. [Moi ici: Aqui é o momento em que eu perco o controlo e escrevo - quem é este tótó? Acham mesmo que trabalhar menos horas é um remédio eficaz para a produtividade? Vamos a números. Olhando para esta tabela e para este gráfico o autor acha que o remédio eficaz para a produtividade é trabalhar menos horas? Isto é tão absurdo, tão absurdo... eu se fosse empresário ou gestor e tivesse um caramelo de um escritório de advogados a fazer-me uma proposta destas... contaria até 10. Sorriria com educação e diria que surgiu um imprevisto e tinha de terminar a reunião por causa de uma urgência. Depois, trataria de nunca mais receber a pessoa ou o seu empregador]"

Qual o erro do autor e de Vasconcellos?


O autor compara maçãs com laranjas. O autor comete o erro de trabalhar abstractamente com euros por hora e assumir que o que cada um produz é indiferente. Engraçado, Reinert, acha que esse é o pecado capital de David Ricardo. Um trabalhador português-tipo não produz o mesmo que um trabalhador luxemburguês-tipo. O que as nossas unidades produtivas aqui e as do Luxemburgo produzem são diferentes.

Um trabalhador numa fábrica de medicamentos genéricos muito maduros, mesmo que trabalhe mais horas, não tem a mesma produtividade de um trabalhador numa fábrica de medicamentos patenteados.

Um "mechanical turk" a trabalhar na tradução de folhas por X cêntimos, mesmo que trabalhe mais horas, não tem a mesma produtividade que um escritor de crónicas pagas.

E volto ao artigo de 2011 que citei ontem:

"Quando as pessoas falam da produtividade partem sempre do princípio que o que se produz se mantém constante ao longo do tempo... a produtividade é vista como uma medida de eficiência porque:

Porque se assume que a qualidade das saídas se mantém constante ao longo do tempo... mas o que é que acontece, num mundo em que a oferta é maior do que a procura, se a qualidade (qualidade aqui não é ausência de defeitos, é muito mais do que isso) se mantém constante? O preço baixa por causa da concorrência. Os clientes migram para concorrentes mais baratos ou para concorrentes com uma oferta superior em qualidade."

O problema de Vasconcellos e deste autor é focar a artilharia para aumentar a produtividade no trabalhador... trabalhador não decide o que produzir. Se o trabalhador for menos preguiçoso, ou estiver mais motivado consegue passar aquela produtividade de 30 para 30,5 €/hora. Peaners!!! Tenho de ser cínico outra vez

Esforço de produtividade que não se traduza em aumento do preço de venda é ... peaners!!!


Querem saber qual é o artigo e onde foi publicado? Já não sei se vale a pena renovar a assinatura do ECO...

domingo, outubro 31, 2021

Mea culpa

O postal de ontem, "Subam os preços!", gerou alguma troca de comentários no Facebook. A certa altura prometi este postal com alguma dose de "mea-culpa".

Existe a Microeconomia e a Macroeconomia.

O meu mundo é o mundo da Micreconomia, é nele que trabalho a apoiar empresas e, ao desenvolver esse trabalho, quase sempre visto a camisola e sinto-me parte da equipa. Nutro simpatia por quem não se encosta, por quem não opta pelo mais fácil e luta pela sua independência. Como a larga maioria dos licenciados e doutorados não empreende, quem está à frente destas empresas é, normalmente, alguém que deixou os estudos cedo e começou a trabalhar e algures avançou para a criação de uma empresa. 

O meu mundo é, muitas vezes, o mundo dos sectores tradicionais. Um mundo sistematicamente condenado à morte pela Academia, pelos jornalistas e comentadores económicos, mas que teima em resistir. PMEs que segundo as sebentas das universidades deviam estar mortas, mas que continuam vivas e a maioria não são zombies, para ser zombie é preciso ter acesso aos corredores e carpetes do poder. Julgo que a Academia falha nas suas previsões porque parte do principio que para ser competitivo há que ser produtivo, ideia que vem da economia do século XX. No entanto, porque existe a concorrência imperfeita, é possível ser competitivo, ainda que pouco produtivo.

Porque acredito na concorrência imperfeita, porque estou solidário com esta raça de gente, sempre aqui combati os que nos media dizem que estas empresas "são de segunda".

No entanto, nos últimos anos alguns factores têm-se conjugado para aumentar a minha preocupação acerca das PMEs:

  • o aumento do salário mínimo 
  • a pressão demográfica
  • a sereia da emigração

Neste postal de Dezembro de 2018 escrevi sobre o uso do salário mínimo para matar as empresas competitivas, mas não produtivas. Quanto mais PMEs competitivas mas não produtivas morrerem mais cresce a produtividade agregada do país. E foi no final de 2018 que comecei a ler nos media tradicionais uma versão diferente do jogo do gato e do rato, o jogo da produtividade e salários. Até aí o canon era o citado pelo então ministro Teixeira dos Santos:

"Temos de melhorar a produtividade do trabalho (com formação, inovações, melhoria na gestão), mas também a disciplina salarial com a fixação dos salários para que acompanhe a produtividade”, resumiu o titular da pasta das Finanças."(Junho de 2010)

A partir de 2018, comecei a ler, sobretudo via Avelino de Jesus, uma outra versão:

"A melhoria da produtividade (de que depende o crescimento da economia) está muito dependente da melhoria dos salários, pelo impulso que imprimem à eliminação das empresas e sectores menos produtivos e ao triunfo dos mais eficientes. Nas economias dinâmicas são os salários que empurram a produtividade e não o contrário como - com demasiada frequência - se ouve dizer.

...

A ideia de que há um bolo que se produz e que depois se distribui (sendo que o salário está rigidamente limitado pelo tamanho do bolo produzido) pulula com vigor esmagador pela economia vulgar; é a alquimia que se apresenta para justificar a moderação das exigências salariais.

Mas, na verdade, o salário e o produto mantêm uma relação dinâmica. O salário determina a formação do produto, tanto na sua dimensão como na estrutura. A pressão salarial tem importantes e virtuosos efeitos sobre a produtividade e o crescimento, criando estímulos imprescindíveis para os empresários efectuarem as escolhas mais virtuosas sobre as tecnologias e os sectores de investimento."

Isto na altura senti como um virar da maré. Por isso, na passada sexta-feira quando ouvi as palavras do presidente da CIP sobre salários e produtividade na rádio Observador confesso que sorri com a ingenuidade dele perante esta corrente. Ainda está em 2010 e com Teixeira dos Santos. Será que não se apercebeu da nova fase?

Claro que a teoria de Avelino de Jesus tem um ponto fraco: "nas economias dinâmicas". A economia portuguesa não é dinâmica. Lembram-se da chapada? E volto ao pensamento sistémico e ao arquétipo da "corrida ao armamento". Aumenta-se o salário mínimo? Recorre-se à contratação de serviços ao Bangladesh!!! Viva Odemira.

Por um lado, esta pressão do salário mínimo e, por outro lado, a crescente pressão emigratória em busca de melhores salários (vejo-a todas as semanas num local de pleno emprego como é Felgueiras. Agora até a França está com"labour supply bottlenecks" o que é um sorvedouro para quem tem familiares por lá), tornam o desafio do aumento da produtividade cada vez mais importante e urgente. O impacte da Macroeconomia.

No entanto, o desafio do aumento da produtividade não passa pelas lições das sebentas de Economia, baseadas no século XX, como tão bem escreveu Esko Kilpi em 2015 e registei aqui. Por isso, não concordei com os economistas do encontro na Junqueira, pregados à sebenta do século XX. Aumentar a produtividade com a receita do século XX é possível? Sim, é seguir a lição irlandesa para captar investimento estrangeiro e queimar etapas, porque "os macacos não voam" e não têm capital.

Não subir preços é acelerar o encerramento das empresas dos sectores tradicionais. Agora trata-se de aproveitar a conjuntura, mas é preciso trabalhar para os aumentar de forma estrutural, sob pena de não conseguir contratar ninguém daqui a 10 anos, a não ser operários bangladeshis ao serviço de empresa bangladeshi a prestar serviço numa empresa portuguesa.

Entretanto, Reinert veio chamar-me a atenção para isto tudo de uma forma pragmática:

"As private citizens, economists realize that the choice of economic activity will largely determine the living standard of their children. On an international level, the same economists are unable to sustain that same opinion because their toolbox is pitched at such a high level of abstraction that virtually no tools are available to distinguish qualitatively between economic activities. At this level, standard economic theory `proves' that an imaginary nation of shoeshine boys and people washing dishes will achieve the same wealth as a nation consisting of lawyers and stockbrokers."

Não precisamos de fazer destas PMEs párias a abater, como tantas vezes académicos sem skin-in-the-game proclamam, mas temos de perceber que a produtividade vai ser fundamental para a sobrevivência. Não por causa do mercado, mas dos governos, da demografia e da emigração.

Trecho retirado de "How Rich Countries Got Rich and Why Poor Countries Stay Poor" de Erik S. Reinert.

quinta-feira, agosto 26, 2021

A realidade não existe

Apanhei um capítulo interessante, mais um, em “Images of Strategy”, o capítulo 12, “Strategy as Numbers”.

Já escrevi aqui muitas vezes que gosto de olhar para o lucro não como um objectivo, mas como uma consequência, para minimizar a tomada de decisões orientadas para o curto-prazo. Esta abordagem, no limite, escreve o autor, pode fazer crer que o motor é a estratégia quando o motor tem de ser o lucro. Sem lucro uma empresa não existe, não tem futuro, não é viável, depende de terceiros além dos clientes, depende de Pedros Nunos e Sizas Vieiras.

A verdade é que gosto de começar os projectos relacionados com a estratégia pela tal visão concreta, em detrimento da abstracta, "Do concreto para o abstracto e não o contrário".

O que significa começar pela vantagem competitiva? Responder à pergunta: como é que esta organização pode ter lucro? Em que teoria podemos visualizar esta organização a ter lucro?

Confesso que não me recordo de já ter pensado assim, desta forma estratégia é organizar, é concatenar esforços e prioridades alinhadas com a teoria inicial sobre como a empresa pode dar lucro.

BTW, no capítulo 9, “Strategy as Systems Thinking”, os autores citam tanto os textos de Humberto Maturana que resolvi ir à fonte e ler alguns. O que  me pôs a divagar para algo como: se a realidade existe ou não é irrelevante, nunca o saberemos e nunca a vamos conhecer, estamos condenados a viver com as representações da realidade que conseguimos criar. 

Diferentes observadores da realidade captam coisas diferentes e, por isso, fazem diferentes interpretações da realidade. Desta forma, ainda que exista uma realidade, diferentes observadores terão sempre a sua própria representação da realidade. Basta imaginar como um portista ou um benfiquista interpretam uma queda do Conceição, ou um fora de jogo do Yaremchuk. Cada um, de boa-fé, vê o que aconteceu de forma diferente ponto.

Assim, um consultor não deve chegar para apresentar “a estratégia” que vai dar a volta à organização. Só pode aspirar a tentar co-construir com a empresa uma teoria na qual se revejam e que permita aspirar a ter lucro. Entregar numa bandeja uma estratégia que as pessoas não conseguem interpretar é crime! 

quarta-feira, maio 05, 2021

Eles gostam de ser enganados!


Primeiro, encontrei este trecho num artigo na HBR já há dias, "How to Spot an Incompetent Leader":
"The bad news is that, despite the availability of such tools, very few organizations are using them. The problem then, it seems, is not that we lack the means to spot incompetence, but that we more often choose to be seduced by it. This means we have only ourselves to blame for our self-destructive leadership choices. Perhaps it is time to stop paying lip service to humility and integrity, until we practice what we preach and pick leaders on the basis of these traits. Instead of promoting people on the basis of their charisma, overconfidence, and narcissism, we must put in charge people with actual competence, humility, and integrity. The issue is not that these traits are difficult to measure, but that we appear to not want them as much as we say."

Um chefe competente é um chefe exigente, é um chefe que nos apresenta a realidade, não estórias de embalar. Um chefe competente não promete facilidades, elas serão uma consequência indirecta do sucesso do esforço. 

Depois, recordei este trecho bíblico, Lucas VI, 43-44:
"Não existe árvore boa produzindo mau fruto; nem inversamente, uma árvore má produzindo bom fruto. Pois cada árvore é conhecida pelos seus próprios frutos. Não é possível colher-se figos de espinheiros, nem tampouco, uvas de ervas daninhas"
Voltemos às chefias, em vez de humildade e procura... 
"It also reminded me of something I’ve noticed in my work helping organizations transform themselves. Some are willing to take a hard look at themselves and make tough changes, while others are addicted to happy talk and try to wish problems away. Make no mistake. You can’t tackle the future without looking with clear eyes at how the present came into being." [Moi ici: Joaquim Aguiar diz isto tantas vezes. Enquanto não reconhecermos os nossos erros, não estamos preparados para os ultrapassar] (1)

Vejo tanta desta resistência nas empresas ... sobretudo quando se procura desenvolver uma acção correctiva, uma acção para eliminar a(s) causa(s) raiz por trás de um problema considerado relevante. Em vez de humildade e procura... defesa, medo, desculpas.

Por fim, ontem:

"É bom que haja luz no fim do túnel, mas a questão é o que essa luz ilumina.

Quando se chegar ao fim do túnel, o que haverá para ver é um nível de dívida que só é sustentável enquanto o Banco Central Europeu e a sua política monetária permitirem, uma incapacidade de acumulação de capital que só poderá ser compensada com a atracção de capital externo, uma demografia sem vitalidade que só poderá ser compensada com imigração em grande escala, e taxas de crescimento da economia que há duas décadas são insuficientes para sustentar os discursos políticos da justiça social.

A democracia não resolve a questão que a luz no fim do túnel lumina. A democracia é um processo que oferece aos eleitores o poder de atribuir legitimidade aos que se candidatam a exercer o poder político, mas não garante que sejam escolhidos os que são mais capazes para o exercer. A democracia é eficaz a seleccionar e a afastar, mas não inventa qualidade onde ela não existir. Quando se chegar à luz que está no fim do túnel, terá de se reflectir sobre o modo como é exercido o poder que a democracia legitima. Ou se quer continuar num regime político distributivo, em que se faz circular recursos internos de uns grupos sociais para outros
...
Ou se reconhece que é necessário assumir a exigência do regime político competitivo para colocar no crescimento económico e na comparação com o exterior os primeiros critérios da escolha democrática e as prioridades da estratégia política."

Quando eu era miúdo fazia uns ditados na escola primária baseados em contos populares com uma moral no fim. Julgo que vivo numa desses contos em que concluo que gostamos, como povo, que nos enganem, que nos contem estórias de embalar. Nesses contos o Diabo, na bifurcação aparecia sempre a apresentar o caminho que leva ao Inferno, o mais bonito e agradável.

Trechos da autoria de Joaquim Aguiar e publicados no JdN de 4 de Maio de 2021 sob o título "Crise, democracia, regime"

segunda-feira, março 22, 2021

Subir na escala de valor e calçar os sapatos do outro (parte I)

Vamos lá tentar relacionar uma série de textos publicados no blogue ao longo das últimas semanas, e ao longo dos anos. Comecemos por este texto de Maio de 2011 sobre o “Vocabulário do valor” (BTW, Nuno, este texto foi pensado aqui), onde se pode visualizar esta figura:

Vamos simplificá-la desta forma:

Vamos considerar a situação de uma empresa “instalada”, preguiçosa, confiante no direito ao seu queijo.

Se nada for feito, a WTP (willingness to pay) baixa, o produto ou serviço deixa de ser novidade, outros conseguem apresentar alternativas mais baratas, logo o preço praticado baixa, ao mesmo tempo que os custos aumentam (vejo muitas vezes na análise de contexto da ISO 9001 a inclusão do aumento do salário mínimo como um exemplo de factor externo negativo 🙏). Ou seja, se nada for feito, o “valor líquido co-criado” (ver primeira figura acima) encolhe.

 

Quando ao longo dos anos aqui no blogue escrevo sobre a subida na escala de valor, (BTW, caro Pedro a caixa de que falo neste link foi-me oferecida por si) escrevo sobre o aumento do valor líquido co-criado:

Vamos chamar a esta empresa preguiçosa, empresa A. 

Vamos chamar de empresa B a uma empresa que segue o truque alemão e aposta na inovação para aumentar a WTP dos clientes, não segue a religião dos Muggles. Reinveste grande parte do lucro (ou seja, aposta forte nos custos do futuro).

Vamos chamar de empresa C a uma empresa que não conhece o Evangelho do Valor e, por isso, faz um grande esforço a tentar melhorar a eficiência.

 

Vamos agora simular a evolução do “valor líquido co-criado” ao longo tempo:

A empresa C faz lembrar a Rainha Vermelha, corre o risco de morrer de anorexia, sempre em pânico com o jogo do gato e do rato.


Diferentes empresas terão diferentes velocidades de criação ou destruição de “Valor líquido co-criado”. Acabarão a trabalhar para diferentes tipos de clientes.

Uma lição que aprendi em 2008(?):


Uma das coisas que aprendi em 2008 foi a da variabilidade da distribuição de produtividades. Existe mais variabilidade da produtividade entre as empresas de um mesmo sector de actividade económica do que entre sectores de actividade económica.

Por que existe esta dispersão de produtividades? Porque as empresas são compostas por humanos, humanos diferentes, com vontades diferentes, com conhecimentos diferentes, com motivações diferentes. Sim, é verdade, por mais que o know-how esteja disponível nem todos o usam. Ou porque não têm recursos (porque desviam poucos lucros para os custos do futuro, ou porque não conseguem capitalizar o suficiente), ou porque preferem a gratificação imediata da exploitation, ou porque têm medo do alto-mar e preferem a cabotagem.


Por isso Maliranta e Nassim Taleb escreveram o que escreveram. A produtividade não sobe porque as empresas sobem na escala de valor, mas porque são eliminadas por concorrentes mais novos.

Agora imaginem que este pacato universo:

É perturbado pela chegada de estranhos.

 

Continua com a chegada da China e os Peter Pans.

domingo, maio 31, 2020

A subida na escala de valor (parte I)

Quando se é só fabricante é-se price-taker não price-maker.

Qualquer organização pode praticar a exploitation e/ou a exploration.

Estado 1
Por hipótese académica admitamos que a massa crítica de fabricantes portugueses de confecção se encontra num estado de equilíbrio 1. Num estado de equílibrio a vida é boa. O que se ganha é superior ao que se gasta. A vida é a ideal? Não, longe disso, mas dá para viver de cabeça erguida. Por estado de equílibrio entenda-se que a maioria dos agentes prefere manter o status-quo, com receio de gerar guerras, de entrar por áreas novas, com medo de trocar o certo pelo incerto.

Só o que o equílibrio não existe. A estabilidade é uma ilusão. Na realidade, quando se olha para a radiografia de um sector económico, muitas vezes os observadores são iludidos pelos números. Aquilo que aparece como um número estável é, na verdade, o somatório de muitos eventos de sinal contrário. A estabilidade pode esconder muita turbulência. No entanto, no tal período de equilíbrio académico a turbulência é baixa e quem entra no jogo económico, por norma, segue os mesmos padrões de competitividade de quem já está em jogo. Afinal por que arriscar ainda mais? Se há um modelo seguido pela maioria e que está a resultar... siga!

Só que a estabilidade é uma ilusão, se o contexto se altera...
Só que os fabricantes não dominam o contexto.
Há sempre um político nacional ávido de ganhar votos à custa do dinheiro dos outros.
Há sempre um político internacional com poder para criar barreiras alfandegárias.
Há sempre um país que cria condições mais atraentes para quem é fabricante.
Há sempre um grupo de consumidores finais do que se fabrica que pode mudar de ideias e de preferências.
Há sempre uma inovação tecnológica que pode reduzir barreiras à entrada e alterar por completo os pressupostos do jogo.
Há sempre uma crise económica ao virar da esquina, nunca é se, mas quando.

Camilo Lourenço no Jornal de Negócios de Sexta-feira passada escreveu (os cortes e os itálicos são meus):
"Em entrevista ao Negócios (edição de 27 de maio), o ex-ministro ensaiou uma das suas tiradas típicas: “A crise surgiu sem tempo de preparação.” Como? Vieira da Silva não sabe que as crises não se anunciam... aparecem de sopetão? E que quando aparecem... os países têm de estar preparados para elas?
O problema de Vieira da Silva, do governo anterior (a que pertenceu) e do Governo atual das empresas é que não percebem isso: gerem a conjuntura sem se preocuparem com os momentos em que acontecem sismos que arrasam o precário “status quo” em que a empresa o país vive."
E claro, a Lei de Murphy está sempre a funcionar:
"Qualquer coisa que possa ocorrer mal, ocorrerá mal, no pior momento possível" 
Alguém que iludido com a estabilidade deu um passo maior que a perna, depois não tem fôlego para o golpe de rins necessário para reorientar o negócio no novo contexto.

Admitamos esta segmentação de um dado sector económico durante o Estado 1

E preparemos um choque económico sério, capaz de dar cabo desta ilusão.

Continua.

segunda-feira, fevereiro 10, 2020

A lição do canadiano

Acompanho os jornais espanhóis há cerca de semana e meia (El País, ABC e El Mundo). Impressionante, todos dias um ou mais artigos sobre a situação de crise que varre a agricultura espanhola.

Aumento do salário mínimo para 950 euros, taxas alfandegárias nos Estados Unidos e abaixamento dos preços pagos pela distribuição grande estão entre os principais motivos avançados.

Ontem, no ABC encontrei "El campo mira a los Países Bajos para solucionar su crisis" e fiquei a pensar num filme que tinha visto ao princípio da tarde sobre a crise de 2008. A certa altura perguntam a um cientista nuclear porque estava a trabalhar para uma empresa financeira. Ele responde que é tudo uma questão de números. Eis alguns trechos:
"En España hay más de 3.500 cooperativas (asociaciones de agricultores que producen conjuntamente y luego se reparten el beneficio), de las cuales casi un millar son de aceite, según datos del Observatorio Socioeconómico del Cooperativismo Agroalimentario.
...
Frente a esta dispersión, hay casos como el de Holanda, un país que, para la mayoría de las fuentes consultadas, es un ejemplo de organización en el campo. Hay pocas cooperativas pero grandes. Tiene cuatro que facturan lo mismo que las 3.500 españolas. Destacan Arla y Friesland Campina, por ejemplo, que son de las que más facturan en Europa.
...
Si en España hay 3.500 cooperativas, en Dinamarca hay 28. La facturación media de una cooperativa en nuestro país es de siete millones de euros mientras que en estos países está entre 300 y 400 millones.
...
«Una estrategia de integración de la actividad agraria permite reducir costes y mejorar la rentabilidad de los agricultores en dos direcciones: actuando sobre los costes de producción a través de compras conjuntas de carburantes, fitosanitarios, abonos, maquinarias, etc. y, de otro lado, participando de los procesos de transformación y comercialización de los productos», señala Aurelio del Pino, presidente de Aces, la asociación de cadenas españolas de supermercados."
Acham mesmo que o sucesso das cooperativas holandesas se deve só à dimensão? Acham que os produtos são os mesmos? Come on!

Quando se vende um produto básico, por mais produtivo que se seja, o que vende é o preço mais baixo.

O primeiro artigo que li foi no passado dia 3 no El País, "Crisis agraria":
"Las causas de fondo están en un mercado desequilibrado que opera siempre en contra de la renta de los agricultores sin que favorezca en demasía los intereses de los consumidores. Las grandes cadenas de distribución ejercen un dominio de mercado que les permite comprar a la baja a las pequeñas y medianas empresas dedicadas a la producción agraria. Este sistema ha acabado por deprimir las rentas y contribuir, junto a políticas de ayudas públicas mal diseñadas, a la persistencia en el campo de un minifundio empresarial, obligado en ocasiones a mantenerse vendiendo a pérdidas.
.
La crisis de la agricultura en España solo tiene una respuesta: aumentar la rentabilidad de las explotaciones agrarias y equilibrar las condiciones de mercado.
...
las explotaciones agrarias españolas tienen que aumentar de tamaño para ganar en competitividad. El campo español se merece estudios de rentabilidad, favorecer la creación de más cooperativas, oportunidades de venta directa a los consumidores, planes para elevar el valor añadido de la producción y mejores condiciones de empleo para asentar la población."
Sempre que penso em subir na escala de valor na agricultura recordo um exemplo, "Agricultura com futuro" e este trecho:
""Instead of growing crops and then finding a buyer, Mr. Menzies said the farm had to start looking for customers first. The typical farm model is “backward to everything I ever did in the engineering and technology side,” he said in an interview. “We looked for a need and we filled it. And where we found that need was from the world.”"
Precisam de crescer e emparcelar terrenos? Quase de certeza.
A produzir o que já existe em excesso? Não me parece.

A tentar subverter a relação com a distribuição grande?

Esta imagem:

Retirada do ABC de ontem em "El campo español afronta la tormenta perfecta". Como não re

Entretanto, no Público de ontem podia ler-se:
"A produção de azeitona para azeite na campanha de 2019 deverá ultrapassar “as 900 mil toneladas”, “posicionando esta campanha como uma das mais produtivas dos últimos 80 anos”.
Se colocarem muitos entraves à distribuição grande ela deixa de comprar em Espanha e passa a comprar mais em Portugal.

domingo, outubro 13, 2019

Subir na escala de valor



Alertado por este tweet fui em busca do artigo original, "O good value for money é agora o grande inimigo do vinho português" publicado na revista Fugas de ontem:
"Descendo à Terra: como vai o vinho português? Muito bem, medalhado como nunca, idolatrado como nunca, consumido como nunca, diverso como nunca, mas pobre como sempre, por ser bom de mais para o que custa. Mais ou menos como o país. O problema do vinho português resume-se nesta frase: good value for money, expressão inglesa para designar uma boa compra. Adoramos dizer que na relação qualidade/preço o vinho português é imbatível. Enchemos o peito de orgulho quando levamos os estrangeiros a reconhecer o mesmo e a confessar que não imaginavam que houvesse vinhos tão bons em Portugal. Mas nem nos damos conta que o good value for money é agora o nosso pior inimigo, o nosso buraco negro, aquele que nos suga para a irrelevância no mundo do vinho. A boa compra é a senha para a simples sobrevivência. Serve até que surja outra compra ainda melhor, graças a um preço ainda mais baixo. [Moi ici: A race to the bottom] Pode servir para vender a grosso, mas é insuficiente para ganhar espaço e notoriedade nos mercados maduros e entre quem gasta realmente dinheiro com o vinho, entre quem olha para o vinho não apenas como uma simples bebida alcoólica mas como algo que tem também um valor cultural e até artístico – algo que pode valer o que se pedir por ele. Fazer vinhos bons e baratos, com custos de produção elevados, nunca deu prestígio e proveito a ninguém.
...
Exportar 800 milhões de euros de vinho, como aconteceu em 2018, é melhor do que nada, mas é muito pouco face aos cerca de cinco mil milhões de euros que só a região francesa de Champanhe facturou.
...
Do vinho português, a percepção que existe – e só desde há poucos anos – é a de ser o tal vinho bom e barato. Quando o consumidor global com poder de compra quer adquirir um vinho caro e especial,  dificilmente pensa em Portugal. Já é um avanço sermos vistos como um país que produz bons vinhos. Mas chegou a hora de centrarmos todos os esforços de promoção na ideia de que o vinho português é mais do que uma boa compra.
...
Precisamos de ser mais ambiciosos e de fazer escolhas, mesmo que tenham custos elevados a curto prazo.
...
Não é de um dia para o outro que se muda tudo. Mas é quando os tempos são mais favoráveis que se pode e deve começar a mudar. Um país bag in box, de produtores mal pagos e em que só umas poucas empresas conseguem realmente ter sucesso, será sempre um país sem grande futuro."
Em linha com as nossas críticas ao mundo do vinho:


quarta-feira, outubro 09, 2019

- Anything goes!

Ontem ao fim do dia, durante uma caminhada, li "Position, Leverage and Opportunity: A Typology of Strategic Logics Linking Resources with Competitive Advantage" de Christopher B. Binghama e Kathleen M. Eisenhar, publicado por Manage. Decis. Econ. 29: 241–256 (2008)

Enquanto lia o artigo só me vinha uma frase à mente:
- Anything goes!

Cada empresa é um caso, cada contexto é único. Perante uma realidade concreta, parte-se sempre, ou quase sempre, daquilo que se tem à mão. Umas vezes faz sentido desenhar uma estratégia a partir de um certo posicionamento, outras vezes fará mais sentido trabalhar alguns factores que se crêem diferenciadores, outras vezes será trabalhar a partir de uma oportunidade. Não existe uma receita única.

E achar que os recursos são fundamentais de per se... é esquecer a realidade aumentada.

quinta-feira, setembro 19, 2019

"The Great Sparrow Campaign" - gente perigosa (parte II) ou Heterogeneidade dos mercados (parte III)

Esta manhã ao ler um artigo delicioso, aborda o tema da estratégia sobre uma perspectiva psicológica que nunca tinha lido, a certa altura escrevi na borda do texto digital: (cromos, galeria, Zapatero, cemitérios).

Agora acrescento "realidade aumentada" segundo esta abordagem em "Para assentar ideias". Neste texto escrevo que, tal como no artigo que ando a ler, a realidade existe, mas nós não somos capazes de ver a realidade, nós só somos capazes de ver aquilo que a nossa experiência nos preparou para ver. Por isso, quando o mundo muda, é fundamental ter gente sem mapas cognitivos castrados em posições de poder, para não estarem demasiado prisioneiros do passado. Por isso, escrevi que o melhor era Zapatero sair. Por isso, coleccionei a galeria de cromos, gente formatada numa época e incapaz de partir o molde onde foi educada. Como não recordar Napoleão:
Por isso, apontei "cemitérios" por causa de uma frase de Max Planck: "Uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes e fazendo-os ver a luz, mas porque seus oponentes finalmente morrem e uma nova geração  que está familiarizada com ela cresce".

Em Portugal, com as mesmas caras há décadas nos cargos de poder parece que continuamos sempre a combater os desafios de hoje com a mentalidade que formatou essa mesma gente no tempo em que não havia nem internet, nem União Europeia.

Em ""The Great Sparrow Campaign" - gente perigosa" escrevi mais uma vez sobre os jogadores amadores de bilhar, um tipo de gente muito perigoso. Gente que Reich apelidaría de Zé-Ninguém, só capaz de ter um horizonte temporal entre o que almoçou e o que vai jantar.

Em Março e Dezembro de 2016 escrevia aqui que havia uns aprendizes de feiticeiro à frente da APROLEP. essa gente queria acabar com as importações de leite, esquecendo que Portugal exportava mais leite do que aquele que importava. Claro, em 2018 a brincadeira rebentou-lhes na mão, a medida que defendiam em 2016 para impedir as importações de leite, arrasou as importações de leite em Espanha, leite que era exportado por ... Portugal.

Esta semana li um texto que me fez lembrar os aprendizes de feiticeiro à frente da APROLEP, desta feita acerca das importações de carne... here we go again, "Defender a Agricultura, defender Portugal":
"A agricultura é a arte de produzir alimentos para a sociedade, [Moi ici: Estou farto de escrever aqui no blogue que a função do agricultor não é alimentar a sociedade, a função do agricultor é ganhar dinheiro através da prática da agricultura. A sociedade não quer saber dos agricultores, quer produtos agrícolas baratos nem que venham da Ucrânia. Por isso, o agricultor não deve ser trouxa e deve trabalhar para quem valoriza o fruto da sua actividade. Adiante] ocupando o território e fixando pessoas, que, através da sua actividade agrícola, mantêm os territórios limpos e ordenados, contribuindo para a manutenção da fauna e flora autóctones. [Moi ici: Sim, a começar pelos eucaliptos, não é?]
...
Portugal é deficitário em carne, e nesse sentido deve apostar em equilibrar a sua balança comercial através do aumento da sua produção nacional.[Moi ici: Cuidado com a estratégia cancerosa, que destrói a joalharia]
...
É com este tipo de medidas que iremos conseguir reduzir a nossa pegada carbónica, ao contrário do que nos tentam vender dizendo que a carne importada até é mais barata… e onde os custos ambientais já não são tidos em conta, como é o exemplo do recente acordo da UE com o Mercosul. A Fenapecuária é literalmente contra este acordo, considera mesmo que é um acordo desleal para com o sector e solicita a todos os partidos políticos que reflictam bem sobre o que está em causa.[Moi ici: Gente ao nível de um Nuno Melo e do seu grito contra os paquistaneses. A um produtor de carne eu aconselharia a subir na escala de valor, a fugir da concorrência pela quantidade e preço e que apostasse na joalharia]
.
Os portugueses merecem saber que as condições e regras de produção não são as mesmas, os portugueses merecem saber que o sector pecuário nacional é moderno, respeita as regras ambientais, cumpre com o bem-estar animal,"[Moi ici: Indo por este caminho, alimentamos o discurso que legitima alguém na Alemanha, ou em França, dizer que a carne portuguesa é produzida em condições e regras de produção que não são as mesmas. O karma é lixado!]"

quarta-feira, setembro 04, 2019

Curiosidade do dia

Esta manhã ouvi no noticiário das 7h00 uma notícia extraordinário sobre o Tribunal de Contas e um tal de "Programa de Acção Nacional de Combate à Desertificação".

Antes de começar a trabalhar ainda tive oportunidade de ler "Um retrato deprimente do Estado português" e de comentar no Twitter:


Entretanto, no noticiário das 17h00 ouvi o comentário do ministro da Agricultura e sorri.
- plano existe há 20 anos;
- plano em execução desde sempre;
- dados de execução podem ser apresentados;
- agricultores são pagos;
- alguns agricultores adoptam práticas e recebem dinheiro.

Sabem porque sorri?

Come on!
Back to Junho de 2007 e os monumentos à treta: "Mais um monumento à treta - parte II", ou Junho de 2008 "Mais uma vez: a propósito de monumentos à treta", ou Dezembro de 2006 "Metas, boas metas vs más metas"

O ministro só falou em acções, em quantidade de trabalho e dinheiro gasto. Nem uma palavra sobre resultados, nem uma palavra sobre eficácia.

domingo, abril 28, 2019

Lean no estado - cuidado! Pensamento de um cínico (parte II)

Parte I.

Outro exemplo da mentalidade velha que domina o aparelho do estado que nos apascenta:
"As queixas por atrasos no pagamento dos reembolsos da ADSE têm vindo a multiplicar-se desde o início do ano. Na maioria dos casos, os atrasos variam entre os três e os seis meses, avança o Correio da Manhã, este domingo. O instituto que gere o subsistema de saúde dos funcionários públicos reconhece os atrasos e justifica-os com a falta de pessoal.
...
O representante dos beneficiários no Conselho Diretivo da ADSE reconhece alguns atrasos e diz que o tempo de espera é “em média, entre dois meses e dois meses e meio”. Eugénio Rosa justifica a situação com falta de pessoal e salienta: “Não há falta de dinheiro, mas de pessoal. Temos 184 pessoas no quadro. Devíamos ter 265”."
Recordo sempre os primeiros dias em que entrei ao serviço de uma empresa onde estive quatro anos. Quando comecei a empresa teria 240 trabalhadores e produzia 70 mil toneladas. Quando saí, a empresa teria 120 trabalhadores e produzia 105 mil toneladas. Durante esse período, sobretudo na área do pessoal indirecto, a empresa fez uso da tecnologia existente (1989 - 1993) e optimizou processos, reduzindo a necessidade de pessoas. Acabou com a figura dos contínuos que faziam circular o correio internamente, acabou com o funcionário administrativo que atendia os pedidos de dinheiro. No entretanto, na altura instalou o AS400 para ligar a Qualidade, a Comercial, as Compras e a Financeira, por exemplo. E toda uma série de tarefas passaram a ser feitas automaticamente.

Imaginem o que seria aplicar o conceito de re-engenharia aos processo do estado... esquecer o que existe, começar com uma folha em branco, escrever "um cliente com uma necessidade" (obter o pagamento de um reembolso) no extremo esquerdo da folha  e, escrever "um cliente recebe o reembolso" ou "recebemos a confirmação de que o cliente recebeu o reembolso". E sem amarras, sem custos afundados, sem "dívidas organizacionais", desenhar de raiz um circuito rápido, seguro e eficaz entre um extremo e o outro.

Claro que isto nunca irá acontecer porque isso iria pôr em causa os direitos adquiridos de muita gente instalada. No entanto, pensem na quantidade de tecnologia e serviços que foram disponibilizados online nos últimos 10 anos...

BTW, algures no blogue relato o caso da secretaria de uma escola onde foram a uma formação para aplicar a abordagem por processos... sabem o que era processo para eles? Um processo é um dossiê, é um ficheiro em papel... uma comédia que é uma tragédia.


Trechos retirados de "Falta de pessoal provoca atrasos nos reembolsos da ADSE"

sábado, dezembro 29, 2018

Ainda acreditam na treta do "erro humano"?

Foi ao final da tarde de sexta-feira que tive conhecimento da conclusão "ERRO HUMANO" via Twitter!



Fiquei estupefacto!
Estamos a chegar ao final de 2018 e ainda se permite escrever num relatório que a causa de um acidente é "Erro humano"

O que só revela o quão heterogénea é a disseminação do conhecimento, das boas-práticas na sociedade. Amigos economistas, estão a ver como a hipótese de que num mercado existe transmissão perfeita de informação é treta?

Em Abril de 1996 morreu um trabalhador nas obras de construção da ponte Vasco da Gama. Alguns dias depois, um dos técnicos chamado a investigar o acidente foi interpelado por um jornalista da rádio que lhe lançou a pergunta: "Trata-se de um erro humano?"

Era um Sábado de manhã, ia no final do IP5 que ligava o nó de Angeja a Aveiro a caminho de uma acção de formação, e nunca me esqueço da resposta do técnico. Algo do género:
- O erro humano não existe! 

Os ingleses tratam o tema da segurança com duas palavras diferentes: safety e security.

Security quando há uma vontade deliberada (por exemplo, a EDP pode preocupar-se muito com a safety dos seus trabalhadores, mas não ligar à sua security quando vão cortar a luz a um apartamento num bairro cigano na Figueira da Foz). 

"Segundo as informações divulgadas esta sexta-feira pela Carris, o guarda-freio não respeitou a sinalização específica, nem acionou de “forma correta” os sistemas de frenagem.
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"O acidente não pode ser justificado por anomalias no veículo, tendo-se provado que os respetivos sistemas de frenagem estavam em perfeitas condições de funcionamento”, referem as principais conclusões do inquérito ao acidente.
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“O acidente ocorreu por erro humano, não tendo o guarda-freio respeitado sinalização específica existente na Rua S. Domingos à Lapa, e não tendo posteriormente acionado de forma correta os sistemas de frenagem disponíveis no elétrico”, acrescenta."
Uma pessoa sem cultura de segurança, sem cultura de melhoria da qualidade, lê isto e só pode concluir: Erro humano! A culpa foi do guarda-freios!

Uma pessoa com cultura de segurança, com cultura de melhoria da qualidade, divaga: certamente o guarda-freios não é um terrorista que quisesse provocar o acidente. Por que é que não respeitou a sinalização específica? Por que não accionou de “forma correta” os sistemas de frenagem?

Reparem, com a conclusão "Erro humano" a investigação pára e o guarda-freios é o culpado, o guarda-freios é o bode expiatório que iliba a organização de qualquer investigação extra que a levasse a questionar-se. Poka-yoka. Conhecem? Nunca apareceria, nunca aparece numa cultura que aceita a desculpa "Erro humano".

O tema "Erro humano" é um tema que sigo aqui no blogue desde 2006. Neste postal "A treta do "erro humano"" listo uma série de reflexões sobre o tema:
"The ‘human error’ explanation does not seem to serve safety, so what does it serve? Perhaps it partly serves society’s need for simple explanations and someone to blame, while absolving society itself for its demands."
“A cultura de culpabilização individual assenta no facto de se tornar o “erro humano” mais como um explicação de per si, do que algo que precisa de ser explicado e compreendido nas suas profundas motivações. Como decorre, a culpa é de quem errou, ocultando-se o facto fundamental de que “as melhores pessoas podem cometer os piores erros”. Este ciclo de culpa inicia-se com a noção de que, sendo senhores da escolha do nosso destino poderemos sempre escolher entre as boas e as más acções, por outro lado e optando pela teoria do menor esforço, é mais fácil a quem analisa parar nas causas de erro que se encontram associadas a quem actua no extremo das acções, o actuante ou interventor directo, a pessoa. Encontrada essa “culpa” é cómodo que a acção de procura cesse a esse nível base, por outro lado, essa é ainda a conveniência administrativa e institucional, que assim vê minimizadas as suas próprias responsabilidades. As instituições que, analisando um qualquer acidente, se ficam pelo modelo de “culpa individual” perdem a possibilidade de alterar o “sistema” e melhorar a segurança pela introdução de novas políticas que tornem novos erros menos prováveis. Ao punir, simplesmente, um indivíduo a organização nega de forma subliminar a sua responsabilidade no evento negativo, mas não o corrige verdadeiramente. É o princípio da negação dos acidentes, que caracteriza as organizações demasiado burocratizadas e sem abertura a qualquer processo de inovação regenerativa. Face a um acidente que ocorre, a tendência é isolá-lo, punir o responsável mais directo, impedir a divulgação do facto e, seguir em frente, após ter tomado medidas limitadas a nível local. Uma atitude diferente desta atitude de negação de acidentes, é a atitude que divulga o evento negativo, encarando-o como algo que merece ser analisado a todos os níveis, começando pelo da organização, e aceita abertamente as novas ideias de mudança, traduzindo assim flexibilidade.”
Escrevia isto. Fechava o postal e publicava-o ainda incrédulo sobre como é possível que em 2018, quase 2019, um relatório feche com uma conclusão deste calibre. Imaginem que em cada empresa deste país, por cada reclamação recebida, a gerência/administração conclua, após investigação independente, que a causa foi erro humano: a costureira enganou-se nos botões; o torneiro enganou-se na espessura da chapa; a camareira enganou-se na temperatura do quarto; o montador enganou-se na sola; ... Resultado: despedir esta gente que faz mal, que trabalha para insatisfazer clientes.

Só que antes de publicar o postal ainda tive oportunidade de ler a versão do JN sobre o relatório, "Condutor de elétrico que descarrilou vai ser alvo de processo disciplinar" e reparem como se abrem tantas portas para continuar a investigar a causa-raiz:
"Questionado sobre a sua formação, nomeadamente sobre a obrigatoriedade de imobilizar o veículo na presença da sinalização apropriada e sobre como combater o escorregamento, disse que sabe que deve efetuar as paragens em causa e que também praticou o bloqueamento das rodas, colocando o manipulo em neutro e atuando os sistemas de frenagem.
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O guarda-freio declarou ainda que o piso estaria escorregadio, afirmando que observou um carro dos bombeiros a derrapar na sua travagem.
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À data do acidente, o guarda-freio tinha 23 dias de condução, tendo iniciado a atividade no passado dia 6 de novembro, e já tinha tido um acidente com responsabilidade no dia 06 de dezembro, refere a Carris, sem avançar mais pormenores sobre este acidente.
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Posteriormente a este acidente de 06 de dezembro, o guarda-freio foi acompanhado e foram dados conselhos para guardar distância de segurança para os veículos da frente.
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"Em termos de condução, o tripulante apresentou algumas dificuldades ao nível da passagem por obstáculos, dificuldade essa que foi melhorando ao longo do tempo após várias correções e sensibilizações", adianta a Carris.
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"Do ponto de vista das suas aptidões físicas e psicológicas não apresenta inconvenientes para o exercício das suas funções", acrescenta a empresa.
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No relatório, a Comissão de Inquérito recomenda "o reforço da quantidade de inspetores, entre um a dois elementos, para reduzir o rácio de guarda-freios por inspetor, de forma a potenciar e a reforçar" a formação contínua de guarda-freios, bem como a inspeção com maior frequência em locais classificados como "perigosos".
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Aconselha também a revisão do Manual de Formação do Guarda-Freio, adicionando como deve ser a presença de cada um dos sinais específicos e não apenas a apresentação do seu esquema gráfico e designação.
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A realização de inspeções de rotina por parte dos "inspetores de enquadramento" (formação contínua) em diversos locais no sentido de "identificar e agir, proactivamente, nos casos de incumprimento" de sinalização específica, em particular no que concerne às paragens obrigatórias de segurança, que venham a ser detetados."
 Ainda acreditam na treta do "Erro humano"? Por isso é que é preciso rever o Manual de Formação do Guarda-Freio? Será que a formação dada é a adequada? Será que o treino dado é realista e representativo? Travar um elétrico carregado de gente é o mesmo que travar um eléctrico vazio? Travar um eléctrico a seco é o mesmo que travar num piso escorregadio?