A propósito de "Grupo de Guimarães vai adaptar fábrica para produzir botas para militares"
Há notícias que pedem celebração imediata e outras que pedem reflexão serena. A entrada da AMF Safety Shoes no segmento militar é, sem dúvida, um sinal de dinamismo industrial e ambição: uma empresa de Guimarães capaz de produzir 900 mil pares por ano, que exporta 90% da sua produção, e que quer entrar num mercado onde a Europa está a reforçar orçamentos de defesa e em que existe procura real.
Mas há momentos em que vale a pena parar e fazer duas perguntas difíceis — não por pessimismo, mas por responsabilidade estratégica.
Será que este segmento faz sentido para esta empresa?
O mercado militar é muito diferente do mercado de calçado técnico para a indústria. No papel, trata-se de uma oportunidade: volumes elevados, estabilidade contratual, visibilidade europeia. Mas na prática, o processo de aquisição militar assenta frequentemente num princípio simples: ganha quem oferece o preço mais baixo. (recordar a cena do filme Armageddon)
E isto levanta uma questão essencial: Será que o cliente militar está disponível para pagar aquilo em que esta empresa é realmente boa?
Ou será que o processo de concurso tenderá a esmagar o valor acrescentado para que caiba num preço mínimo?
É uma dúvida legítima.
Num segmento onde a diferenciação técnica existe, é importante perceber se esses factores são valorizados ou se, no fim, a variável dominante é o preço unitário.
Se o valor não for pago, a excelência deixa de ser vantagem e torna-se apenas um custo.
Será que faz sentido fazer este produto na mesma fábrica que produz séries pequenas e inovadoras?
Outra questão que merece ponderação é a mistura de lógicas industriais.
Produzir botas inovadoras, com séries pequenas, ciclos curtos, experimentação rápida e grande flexibilidade, é uma coisa. Produzir equipamento militar para concursos públicos, com volumes elevados, especificações rígidas e margens apertadas, é outra coisa completamente diferente. A notícia refere que a empresa prevê “duas linhas diferenciadoras: uma com inovação e outra mais tradicional". Isso mostra que a própria AMF já reconhece a necessidade de separar as lógicas produtivas. A questão é saber se essa separação será suficiente.
Porque misturar operações com ADN tão distinto pode gerar tensões reais (e recordo o velho Skinner e a sua plant within a plant:
- competição interna por recursos;
- prioridades contraditórias;
- custos fixos mais elevados do que o segmento militar suportará;
- risco de a linha “inovadora” perder agilidade;
- risco de a linha militar contaminar a cultura industrial com uma lógica de custo mínimo.
Não é raro ver empresas excelentes a perderem o foco quando tentam servir dois mundos com expectativas e modelos económicos incompatíveis.
Não é um problema técnico — é um problema estratégico.
Misturar estas duas lógicas (calçado inovador e calçado militar) na mesma linha, com as mesmas pessoas, os mesmos gestores, as mesmas métricas e a mesma cultura operacional é pedir problemas.
Skinner ensinou-nos que uma fábrica tem de ser ‘focused’. Quando duas lógicas industriais coexistem — inovação de alta variedade e concursos públicos de grande volume — a empresa entra num conflito interno permanente. A solução não é misturar; é separar. Seja fisicamente, seja criando PWPs: mini-fábricas com identidade própria, métricas próprias e cultura própria.
Uma reflexão final
Nada disto diminui o mérito da AMF Safety Shoes.
Antes, pelo contrário: quando uma empresa chega onde esta chegou, merece exatamente este tipo de reflexão séria — porque está numa posição em que decisões estratégicas moldam décadas, não anos.
O objetivo não é travar a ambição, mas garantir que ela assente sobre três perguntas que todos os líderes responsáveis devem fazer:
Este cliente valoriza realmente aquilo que nos diferencia?
Este segmento tem margem para pagar o nosso nível de competência?
É prudente misturar lógicas industriais tão diferentes sob o mesmo tecto?
Se a resposta for sim — óptimo.
Se a resposta for talvez, vale a pena investigar.
Se a resposta for não, é sinal de que a empresa precisa afinar a sua direcção antes de avançar.
Decisões estratégicas só são fortes quando nascem da dúvida certa.
E estas duas dúvidas, neste caso, não são apenas legítimas, mas também essenciais. Mas isto é reflexão de um outsider que vê as coisas ao longe e filtradas por aquilo que chega aos jornais.
%2016.01.jpeg)
%2012.08.jpeg)




