Algures, no início da década de noventa do século passado, ainda antes dos meus trinta anos, passei por uma experiência que me perturbou. Durante uma reunião com várias pessoas, de repente, dei conta de que não conseguia deixar de olhar para um dos participantes como mais um ser humano.
Olhava para ele e via-o como se estivesse a olhar para um extra-terrestre pela primeira vez, olhava para a forma e localização dos olhos, olhava para a forma e dimensão daqueles canais a que os humanos chamam nariz, olhava para o tamanho e forma das orelhas, para a dimensão, textura e movimento das sobrancelhas …E foi esta a sensação que voltei a sentir quando olhei para o pormenor deste
Durante os anos que se seguiram, não voltei a lembrar-me dessa experiência, nem a revivê-la. Em 2003, estava acampado num parque de campismo, nos arredores de Barcelona, e voltei a passar por uma experiência “visual” parecida. Estava no balneário a pentear-me, depois de um duche de final de tarde, quando, ao olhar para os pés de alguém que a essa hora fazia a barba, reparei na forma dos seus pés, na dimensão e posição relativa dos dedos … não tinha nada a ver com a forma dos meus pés, era como se pertencêssemos a espécies diferentes …
Naquele período de férias, tempo de maior liberdade, o meu consciente começou a processar a informação e, … tive um momento de epifania!!!
O nosso cérebro, o meu cérebro, não é preguiçoso, é mas é um tarado, um paranóico concentrado na eficiência. Como a largura de banda do nosso estado consciente é limitada, para que o nosso “Eu” consciente não dê “tilt (como nas velhas máquinas de jogos dos anos setenta do século passado), para que o nosso “Eu” consciente não empanque (como um computador antigo, por excesso de dados, “data overflow” como acontecia num filme que vi na televisão, ainda a preto e branco), o meu cérebro trabalha com padrões (com modelos, com arquétipos, com simplificações da realidade) e “engana-me” (sem querer, sem maldade).
Assim, quando olho para a cara de alguém, o meu cérebro vai buscar uma imagem, uma base de dados genérica de pré-conceitos e sobre ela implanta, embebe, aquilo que à primeira vista distingue uma pessoa de outra. Ou seja, vejo mas não vejo, vejo a cara de A e sou capaz de reconhecê-la de entre uma multidão, mas o meu cérebro consciente não perde tempo com pormenores a que no momento não dá importância … por exemplo, falar com alguém cara-a-cara e não perceber que a pessoa, de um dia para o outro, cortou o cabelo.
Provavelmente, aquilo a que convencionalmente se chama um artista, é alguém que tem apurada a capacidade de não se deixar enganar tão facilmente pela sua base de dados de imagens genéricas e que implanta mais informação concreta sobre o seu pré-conceito, quando olha para as coisas. Lembro-me de estar à espera da minha namorada e, para ajudar a passar o tempo, olhar para uma montra de quadros, de uma daquelas lojas incaracterísticas e humildes que povoavam (povoam?) a cidade do Porto, e dar de caras com um quadro que me surpreende: o artista tinha retratado um gato nas suas tarefas diárias de higiene pessoal. O artista tinha retratado um gato, era um gato mas não era um gato. O autor não se tinha preocupado com o pormenor retratista, o autor tinha procurado colocar na tela a essência de ser gato, coisas em que no dia-a-dia eu já não reparava, mas que quando as vi, ali plasmadas na tela, me impressionaram até ao dia de hoje (já lá vão mais de vinte anos): aquilo era “UM GATO”.
Provavelmente, aquilo que se passa com o meu cérebro passa-se com o cérebro das outras pessoas, e se imaginarmos um “cérebro social”, como o pensamento, a forma de ver o mundo que emerge de uma comunidade de seres humanos, também esse “cérebro social” pode ser enganado, de boa-fé(?), por ideias pré-concebidas.
Quando reconhecemos onde estamos, como sociedade, o Hoje, e comparamos com o onde queríamos estar, ou o onde imaginamos que deveríamos estar, ou o onde pensamos que teríamos o direito a estar, o Futuro, constatamos que existe uma lacuna, um hiato:
Mas porque não temos experiência no terreno, mas porque vivemos de preconceitos, mas porque não estamos habituados a investigar e a conjugar factos e teorias em tandem, mas porque temos de apresentar soluções politicamente correctas, mas porque temos um pensamento muito linear e não somos capazes de abarcar o todo, acreditamos que a vida é um puzzle, ou seja, um problema, um desafio com uma solução existente à partida, uma solução que não conhecemos mas que existe, e não um desafio tipo “mess” (à inglesa), uma verdadeira confusão onde “anything goes” …
… por isso, temos tendência a refugiarmo-nos nas Grandes Explicações (se calhar este texto é mais uma delas), nas Grandes Soluções. E como o cérebro social funciona e também nos engana, nas Grandes Simplificações, nos Grandes Mitos:Escondemos e simplificamos a realidade complexa com os mitos. Assim, a culpa dos nossos males é do Outro: seja ele chinês, vietnamita, indiano, romeno, marroquino, o Outro. A culpa dos nossos males é da legislação laboral, dos empresários, dos impostos, dos trabalhadores, do governo, …
Ando a frequentar uma acção de formação sobre Inteligência Emocional. Daniel Goleman define: “Inteligência Emocional significa conhecer as nossas emoções, gerir os nossos sentimentos, motivarmo-nos a nós próprios, reconhecer as emoções dos outros e gerir relacionamentos …”
Por que não somos capazes de reconhecer no Outro aquilo que já fomos? Nós também, algures nos anos setenta e oitenta do século passado, já fomos o Outro dos trabalhadores têxteis alemães, dos trabalhadores do calçado franceses!
Por que nos refugiamos em mitos: o Plano Tecnológico; a Formação Profissional; a Invasão Chinesa?
Há vinte e cinco anos, como refere Tom Peters no início deste podcast, os americanos temiam o poder económico japonês. Em vez de se fecharem, em vez de copiarem, mudaram as regras do jogo, “anything goes"!!!
Aspiro a viver num país - e procuro contribuir para isso - onde se oiçam menos as vozes de chorões mimados e mais as vozes dos sonhadores que criam mundos novos, que criam novas oportunidades, que desenham, como os artistas, pequenas soluções, milhões de soluções. Destas, umas falham, outras têm sucesso e outras TÊM UM GRANDE SUCESSO. Só que o sucesso nunca é eterno, é sempre transitório, e cada vez mais transitório (HYPERCOMPETITIVE PERFORMANCE: ARE THE BEST OF TIMES GETTING SHORTER? de Robert R. Wiggins).
A culpa não é de ninguém, é a vida, dizia Guterres e escrevia Shakespeare…
Como dizia Mao(?) “Que milhões de flores desabrochem!”
Que milhões de tentativas surjam, que milhões de pequenos planos apareçam, muitos hão-de perecer, alguns hão-de ter sucesso e ainda outros hão-de ter muito sucesso. Pequenos planos são mais flexíveis, são mais ajustáveis, são mais realistas e mais próximos da realidade.
A crença mítica NUMA estratégia mágica, numa estratégia mítica, numa estratégia única, está tão desactualizada… é tão “krushoviana”,!!!
“Hello!” Acordem!!!
A minha leitura das férias de Verão, “The Origin of Wealth” the Eric Beinhocker, conta as experiências de Lindgren e o seu “The Game of Life” combinado com o “The Prisioner’s Dilemma”, as conclusões são … eloquentes, esmagadoramente óbvias “after the fact”:
So who was the winner? What was the best strategy in the end? What Lindgren found was that this is a nonsensical question. In an evolutionary system such as Lindgren’s model, there is no single winner, no optimal, no best strategy. Rather, anyone who is alive at a particular point in time, is in effect a winner, because everyone else is dead. To be alive at all, an agent must have a strategy with something going for it, some way of making a living, defending against competitors, and dealing with the vagaries of its environment.”
…
O trecho que se segue, faz-nos pensar no choradinho dos coitadinhos, que protestam contra os concorrentes, por serem chineses, por serem espanhóis, por serem …, por existirem.
“Likewise, we cannot say any single strategy in the Prisioner’s Dilemma ecology was a winner. Lindgren’s model showed that once in a while, a particular strategy would rise up, dominate the game for a while, have its day in the sun, and then inevitably be brought down by some innovative competitor. Sometimes, several strategies shared the limelight, battling for “market share” control of the game board, and then an outsider would come in and bring them all down. During other periods, two strategies working as a symbiotic pair would rise up together – but then if one got into trouble, both collapsed.”
…
And now, the grande finale:
“We discovered that there is no one best strategy; rather, the evolutionary process creates an ecosystem of strategies – an ecosystem that changes over time in Schumpeterian gales of creative destruction.”
Estratégia única foi a perdição de Roma em Canas, estratégia única é aquilo a que a vida tem horror.
Depois de terminar este texto, em que abordo o uso do pré-conceito, deparo com este postal de Pedro Arroja sobre os preconceitos. Acredito que os preconceitos são perigosos, quando as condições em que eles se formaram, desapareceram, porque induzem comportamentos que já não estão adequados à nova realidade.
“Os preconceitos são regras de acção automáticas que as gerações anteriores nos legaram e que nos permitem economizar muito tempo e outros recursos.” Cá está a questão da eficiência na utilização da largura de banda do “Eu” consciente.
“Tendo-se confrontado com problemas semelhantes aos nossos no passado, as gerações dos nossos antepassados tiveram de encontrar soluções para eles.” OK, Arroja fala na vertente social, eu falo na vertente económica, e nessa vertente está tudo em mudança constante.