A sua tese é simples: até então, a ISO 9001 servia para conferir confiança aos clientes de que os fornecedores conseguiam cumprir consistentemente os requisitos. Ao introduzir a melhoria contínua, os autores criaram algo difícil de auditar, subjectivo, que retirou clareza e desviou a norma do seu propósito inicial.
Concordo que a norma perdeu clareza, mas não acredito que o problema esteja na ideia de melhoria. O problema está noutro ponto: o mundo mudou e a excelência operacional deixou de ser suficiente para garantir o sucesso do negócio. A norma não tem sabido salientar este ponto com a devida ênfase, e isso percebe-se muito bem na forma como a política da qualidade é escrita, comunicada e frequentemente auditada, como um texto genérico, desligado da verdadeira orientação estratégica da organização.
Nos anos 80 e 90, falar de qualidade era falar de Garantia da Qualidade. O foco estava em garantir, objectivamente, que o fornecedor produzia peças conformes. O jogo competitivo era claro: reduzir defeitos, aumentar eficiência, controlar custos. Num mundo em que a excelência operacional fazia a diferença, a certificação ISO 9001 era uma poderosa credencial.
Com a ISO 9001:2000, o conceito evoluiu para o de Gestão da Qualidade. A definição de sistema de gestão é explícita: trata-se de “estabelecer políticas e objectivos e trabalhar para alcançar esses objectivos”. Isto deslocou o foco do presente (o produto ou serviço está OK) para o futuro — a organização deve gerir-se como um sistema, considerar o contexto, antecipar riscos e planear mudanças.
Convém também recordar a origem da ISO 9001. A norma foi criada não para auditorias de terceira parte, mas para que os clientes pudessem auditar os seus fornecedores e, dessa forma, assegurar-se da conformidade dos produtos adquiridos. A certificação por entidades independentes só se generalizou mais tarde. Essa génese explica muito do seu desenho inicial: verificar se o fornecedor era capaz de atender aos requisitos do cliente, ponto final. O foco era o controlo, não a estratégia.
Essa herança ainda hoje se sente. Veja-se a cláusula 8.2, que trata da determinação de requisitos relativos a produtos e serviços. O texto é praticamente mudo sobre algo decisivo numa lógica de gestão: a necessidade de escolher clientes-alvo, de procurar e conquistar os clientes certos. A norma continua presa à ideia de “cumprir os requisitos do cliente”, como se todos os clientes fossem iguais e como se não houvesse escolhas estratégicas a fazer.
Já em 1996, Michael Porter alertava para o perigo de confundir a eficiência operacional com a estratégia. Os japoneses tinham revolucionado a gestão com qualidade total, kaizen e normalização, mas ao competir todos com os mesmos métodos, ficaram presos numa “armadilha de eficiência” — todos iguais, todos competindo pelo preço.
Nos meus textos sobre a “
cristalização” e a mudança de paradigma que levou ao fim da minha marca
Redsigma, desenvolvi esta ideia: houve uma altura em que reduzir a variabilidade e apostar na normalização bastava para diferenciar. Mas isso esgotou-se. Quando o mundo foi invadido por produtos chineses a preços muito competitivos, a excelência operacional não foi suficiente para assegurar o sucesso do negócio. Agora, o sucesso não vem da uniformidade, mas da capacidade de criar variedade, diferenciação e valor.
É aqui que a ISO 9001 falha em ser explícita. Ao falar da política da qualidade, dos objectivos e da melhoria, a norma não sublinha suficientemente que a qualidade deve ser entendida como criação de valor no futuro, e não apenas como garantia de eficiência no presente.
Na prática, isto traduz-se em políticas de qualidade redigidas de forma genérica, que não expressam escolhas estratégicas, e em auditorias que verificam a conformidade documental, mas não questionam se a política realmente orienta a organização para o futuro.
O que está em causa não é retirar o conceito de melhoria da norma. Pelo contrário: a melhoria é essencial, mas deve ser entendida como a ponte entre a eficiência operacional e a diferenciação estratégica.
A norma deveria reforçar que:
- A Garantia da Qualidade continua a ser necessária — garantir os requisitos vigentes é a base.
- A Gestão da Qualidade só tem sentido se for usada para preparar a organização para o futuro — ligar o contexto, os riscos, as oportunidades e as escolhas estratégicas.
- A política da qualidade deve deixar de ser uma formalidade e passar a ser a tradução clara da direcção da empresa, onde se vê como pretende criar valor e diferenciar-se.
A ISO 9001 não se perdeu por ter introduzido a melhoria. Perdeu relevância porque não tem sabido ligar-se de forma clara à realidade de que a excelência operacional, por si só, já não garante sucesso. O desafio hoje não é apenas fazer bem o que todos fazem, mas escolher onde ser diferente, onde criar valor, onde apostar recursos.
Uma boa norma de gestão da qualidade deve ajudar as organizações a percorrer esse caminho. Se não o fizer, ficará condenada a um papel cada vez mais burocrático, longe das decisões que realmente definem o futuro das empresas.