domingo, agosto 12, 2018

À distância

Sexta-feira passada tive um telefonema inesperado de um amigo feito nas lides profissionais. Telefonou para me zurzir nas orelhas por só agora descobrir que mudei de residência para Gaia. A conversa acabou por nos levar para uma recordação de 2008, "O paradoxo da estratégia (parte VIII: cenários, futurização e incerteza)" confirmada em "27 meses depois" (Novembro de 2010) e em "Mais uma sugestão de modelo de negócio (parte I)" (Dezembro de 2010).

Às vezes o trabalho de um consultor é maioritariamente técnico - uma empresa precisa de um balanced scorecard, ou precisa de implementar um sistema de gestão da qualidade, ou de obter uma marcação CE. Outras vezes o trabalho tem um misto de técnica e de relação/experiência e distanciamento. Em "awesome people with awesome interests" dou um exemplo pessoal de como pessoas distantes da vivência de um problema têm a vantagem de verem a big picture e não se deixarem iludir por "custos afundados" de vária ordem.

Coisas que previ e escrevi em relatórios em 2008 não foram escutadas porque:
- A realidade futura não pode ser tão má!
- Fazemos bem e somos importantes para a comunidade!
- O governo é pessoa de bem!
- Você exagera!
- O que é que você sabe deste sector?
Quando uma organização suspeita que um terramoto na paisagem competitiva se aproxima tem duas alternativas:
  • preparar-se para um mundo diferente;
  • enterrar a cabeça na areia, afastar os hereges que perturbam a paz e esperar que tudo corra pelo melhor.
Quando uma organização suspeita que um terramoto na paisagem competitiva se aproxima, quanto mais cedo decide agir, mais hipóteses tem de fazer uma revolução estratégica bem sucedida.

Um sector com o qual nunca trabalhei, mas que sigo há anos e comento aqui no blogue é o da produção leiteira. Desde Março de 2008 com "A lei dos vasos comunicantes" até Agosto de 2018 com "Karma is a bitch!!! Ou os jogadores de bilhar amador no poder!" são 151 postais com o marcador "leite". Postais onde, com distanciamento, vou prevendo o que aconteceu e continuará a acontecer, vou criticando produtores e ministros por se enganarem mutuamente, pedindo e lançando medidas sintomáticas sem nunca irem à raiz do problema. E é aqui que sinto a vantagem do distanciamento.

O que é o negócio do leite?

Aprendi-o há muitos anos, Dezembro de 2007:
"Milk is the ultimate low-involvement category, and it shows. Only 10% of the international sample (in Denmark, Germany and Spain the number is less than 5%) would expect the private label version to be of a lesser quality.")
Ou seja, o leite é uma commodity, o negócio é preço.

Se o negócio é preço só há uma forma de ter futuro, ser o mais eficiente possível:

  • Ter cada vez mais vacas;
  • Ter vacas cada vez mais produtivas;
  • Ter custos cada vez mais baixos.
Num mundo em que todos querem sempre ter um ano n melhor que o ano n-1, por exemplo, melhores salários para o seu pessoal, não há como fugir daqueles três vectores da eficiência.

E ao longo dos anos relatei aqui essa evolução, cá e no estrangeiro:
Em Janeiro de 2012 em "Primeiro as marcas brancas... (parte II)" publiquei esta tabela:
A coluna 1 indica o número médio de vacas por exploração leiteira. A Dinamarca já ia nas 119.

Acontece que ao mesmo tempo, a paisagem competitiva vai-se alterando com a demografia e os estilos de vida. Cada vez menos crianças, cada vez menos consumo de leite. Cada vez mais gente a seguir estilos de vida diferente e até a maldizer o leite, recordar "E fechá-los numa sala durante 12 horas?" de Setembro de 2015. Com dois filhos maiores de idade, o meu frigorífico neste momento tem zero litros de leite de vaca e uma embalagem de 1 litro de leite de amêndoa e outra de uma iguaria da qual não abdico há anos, manteiga de amêndoa. Também tenho um pote de 1 kg de iogurte grego.

Então, os produtores de leite dizem:
- É preciso produzir mais queijo e iogurte. O consumo de iogurte está a aumentar e é uma forma de canalizar a produção de leite.
Já aqui descrevi o conceito de espaço de Minkowski, as posições/decisões/experiências anteriores limitam as possibilidades de escolha estratégica futuras. Para se triunfar no negócio da escala da produção de leite optam-se por animais bons a produzir leite em quantidade, leite bom para leite e com baixos teores de gordura para produzir boa manteiga ou bom iogurte. Estratégia é isto, para se ser muito bom a uma coisa limita-se a possibilidade de ser bom a outra. BTW, as cooperativas portuguesas têm apostado nas marcas dos seus iogurtes? O que têm feito para aparecer com novos produtos? Como competem com os Lidl, Aldi, Intermarché, Continente, Pingo Doce deste mundo?

Ao longo dos anos fui aqui dando sugestões de como os produtores podem dar a volta com a diferenciação, desde o leite biológico completo até às pequenas marcas, talvez haja espaço para uma Font Salem para produtos lácteos? Talvez haja espaço para cooperativas mais pequenas que sirvam produtores com uma visão mais homogénea. Hoje em dia, uma mesma cooperativa não pode servir igualmente bem o produtor com 450 cabeças de gado e o que tem 50 vacas.

Quando não se pode competir de igual para igual com Golias... tem de se pensar como David.

O que sublinho nos últimos tempos é o aparecimento de mensagens muito menos irrealistas. Sim, é verdade, os produtores continuam a manifestar-se e a exigir o impossível: mais produção, menos encerramentos e melhores preços. No entanto, sinto um pouco mais de tino nos últimos textos na imprensa, talvez por abrantismo (?):

Entre o engraçado e o triste está a preocupação simultânea de uns com o encerramento das 160 explorações e com esta outra realidade "Emprego na agricultura em Portugal pesa o dobro da média da UE", sem perceber a relação entre uma coisa e outra, como as pessoas que querem défices maiores estando ao mesmo tempo contra o aumento da dívida.

Nisto do leite da agricultura há muito de megafone e activismo político:
A sério, dos jornalistas que escrevem sobre o leite quantos estudam as estatísticas? O preço do leite em Portugal em Junho de 2018 foi 6% acima do praticado em Junho de 2017. Nada mau!

E como está a evolução das margens na Europa? Não me parece que haja interesse em mudar.

Assim, ano após ano, à custa de milhões de euros torrados aos contribuintes, vai-se mantendo um sistema intrinsecamente instável e artificial. E ano após ano, a minha solução vai-se tornando menos irrealista porque é a única que reporá um equilíbrio natural que nunca será permanente.

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