quarta-feira, janeiro 03, 2018

Explicar a ISO 9001 a um grupo de empresários (parte I)

Um grupo de empresários do calçado com quem trabalho há alguns anos, deu-me o privilégio de trabalhar com a sua empresa como consultor no apoio à implementação de sistema de gestão (da qualidade) e certificação ISO 9001. (De agora em diante escreverei sempre sistema de gestão sem mencionar a palavra qualidade, porque pretendo que seja muito mais do que um sistema de gestão da qualidade ponto).

O tema da certificação ISO 9001 foi abordado várias vezes ao longo dos últimos dois anos mas só agora se chegou a um consenso de que seria útil em termos comerciais.

O projecto arrancará no final deste mês e estes próximos postais fazem parte da minha preparação para o que lhes irei apresentar como equipa de gestão de topo, para ficarem com uma ideia mais concreta sobre em que é que se vão meter, o que se espera deles e como podem ser exigentes.

Sim, a minha preparação. A minha abordagem não é a de ser o consultor mais eficiente. Por isso, não sinto grande interesse em servir de taxista documental. Não tenho um sistema de gestão desenhado e montado à priori em que seja só necessário mudar o logotipo e a data na documentação. Trabalho como um artesão que co-cria o sistema em função da empresa, das suas pessoas, do seu sector e estratégia.

A ISO 9001 trabalha a vários níveis e vamos começar pelo nível mais alto, o da gestão de topo.
Sou um tipo visual que gosta de esquemas e de desenhos,  e este é o primeiro de vários esquemas que irei utilizar.

Sei que os meus amigos empresários, como gente de acção sobretudo, não vão muito à bola com normas, mas para mostrar que não invento e alicerçar o esquema em algo que não a minha opinião, acrescento de seguida as cláusulas da ISO 9001:2015.
Liderança, exemplo, motivação (relacionado com a cláusula 5.1 da ISO 9001:2015, Liderança e compromisso)

Uma empresa com um sistema de gestão não pode ser como uma rolha de cortiça que é levada pelas ondas e pelo vento, boiando sem intenção, sem direcção, sem vontade. Uma empresa com um sistema de gestão age proactivamente, tem vontade própria. Observa, decide, age, monitoriza e volta a actuar. Uma empresa com um sistema de gestão tem uma gestão de topo que é o seu cortex cerebral, e que decide para onde vai, onde quer estar e como se vai diferenciar.

Qualquer subordinado é o melhor estudioso do comportamento da sua chefia. Não interessa o que o seu chefe diz, ou proclama; interessa o que o seu chefe faz, onde ocupa o tempo da sua agenda. Por isso, sem o exemplo da gestão de topo no respeito pelas regras do sistema de gestão, não esperem respeito por parte do resto dos humanos da empresa.

Um sistema de gestão tem de ser específico da empresa e da sua gestão de topo. Um papel fundamental da gestão de topo é o de acompanhar a fase de implementação do sistema de gestão com uma preocupação permanente: manter em alerta permanente o radar da bullshit. O sistema de gestão será tanto mais útil quanto mais útil for para a gestão de topo. Muitas vezes a gestão de topo das empresas comporta-se como os adultos na estória do rei que ía nu. Dizem:
- Temos um consultor a trabalhar para nós, o gajo é que sabe disto da ISO. E se ele está a dizer que precisamos de fazer isto, é porque temos de fazer isto porque está na norma.
Por favor!

Quando virem algo que vos cheire a bullshit, gritem: BULLSHIT!!!

A ISO 9001 diz, por exemplo: que uma empresa com um sistema de gestão precisa de tratar as reclamações que recebe, diz que uma empresa deve controlar a qualidade das matérias-primas que adquire. A ISO 9001 não prescreve como é que isso tem de ser feito. Há anos trabalhei com uma empresa de confecção de malhas que comprava fio para a sua produção. Faziam, literalmente, quase uma dezena de testes para aprovar um lote de fio na recepção. Aí agi eu como a criança da estória e perguntei:
- Nos últimos cinco anos quantos lotes de fio rejeitaram?
- X - responderam.
- E quais os motivos de rejeição.
- Quantidade e, sobretudo, cor
- Então não fará sentido acabar com os outros testes (número métrico, pilling, ...)

Assim, mantenham o radar alerta, acompanhem os relatórios de ponto da situação e, por favor, sejam exigentes como a potassa!!!

Âmbito do sistema (relacionado com a cláusula 4.3 da ISO 9001:2015, Determinar o âmbito do sistema de gestão da qualidade)

Um sistema de gestão não tem de ser aplicado a tudo o que uma empresa faz. A decisão sobre o que incluir no âmbito de um sistema de gestão é uma decisão de gestão, não uma decisão técnica. Por exemplo, uma empresa pode trabalhar em regime de private label e ter três modelos de negócio a funcionar:

  1. Empresa desenvolve modelos que apresenta em feiras, depois recebe encomendas de amostras de colecção e, depois, recebe encomendas;
  2. Empresa participa em concursos para fornecer organizações grandes em que o calçado faz parte do uniforme de trabalho;
  3. Empresa tem loja online em plataforma onde expõe modelos que são adquiridos e tem de repor stock

A empresa pode decidir implementar o sistema de gestão só para o modelo de negócio 1, ou só para o modelo de negócio 2, ou só para o modelo de negócio 3, ou para os três ou combinações de dois deles. A empresa pode decidir implementar o sistema de gestão nos dois modelos de negócio e só certificar um deles, por exemplo. Diferentes modelos de negócio podem exigir que algumas das actividades sejam realizadas de forma específica, por exemplo a actividade comercial.

Uma vez escolhido o âmbito...

Quem servimos e em que ecossistema (relacionado com a cláusula 4.2 da ISO 9001:2015, Compreender as necessidades e as expectativas das partes interessadas)

Cada vez mais, o sucesso de uma empresa exige que se tenha em consideração as necessidades e expectativas de outras partes interessadas que podem contribuir para a sustentabilidade do desempenho. É claro que os clientes são uma parte interessada, afinal são eles que nos dão o dinheiro com que pagamos as contas, preparamos o futuro e suportamos a impostagem. No entanto, podemos identificar outras partes interessadas:
Um aviso, antes que se assustem, a ISO 9001 sublinha que é a gestão de topo, não o consultor ou um auditor, que decide quais são as partes interessadas relevantes no âmbito do sistema. Há empresas que consideram algumas funções (trabalhadores) como críticas, outras todos, outras ninguém. Há empresas que consideram alguns fornecedores como críticos, por exemplo, aqueles que ajudam a fazer a diferença. Em relação à figura acima, as lojas, por exemplo, há cadeias de lojas e há lojas independentes, há lojas que trabalhem directamente com a empresa e que faça sentido salientar aqui com uma ligação directa? E agentes, têm um papel no ecossistema da empresa?

Vêem o impacte da escolha do âmbito? Se o âmbito escolhido for o associado ao modelo de negócio 2 há logo uma série de partes interessadas na figura que desaparecem.

Depois de determinadas as partes interessadas relevantes, (a palavra "determinar" na ISO 9001 tem um significar importante... importante não, muito importante! Determinar significa um acto de escolha, não uma simples descoberta), a empresa deve determinar quais os requisitos dessas partes que são relevantes para o sistema de gestão. Aqui faço três reparos:

  1. A ISO 9001 num anexo (A.3) tem este trecho "Não há nenhum requisito nesta Norma para que a organização tenha em consideração partes interessadas quando tiver decidido que essas partes não são relevantes para o seu sistema de gestão da qualidade. Compete à organização decidir se um requisito particular de uma parte interessada relevante é relevante para o seu sistema de gestão da qualidade.";
  2. Estas escolhas das partes interessadas relevantes e dos seus requisitos relevantes, estão directamente relacionadas com as opções estratégicas de uma empresa;
  3. Gosto de pensar em setas bidireccionais.

Sobre 1 - a empresa pode determinar que os distribuidores são uma parte interessada e acrescentar a seguir que só lhe interessa trabalhar com determinado tipo de distribuidores, porque têm certas características/exigências que a empresa decidiu esmerar-se em servir. Isto não tem nada a ver com o distribuidor ser honesto ou bom pagador, e tem tudo a ver com escolhas estratégicas. (Ver este exemplo)

Sobre 2 - já foi explicado.

Sobre 3 - gosto de propor que as empresas não só determinem o que é que vão considerar de entre o que as suas partes interessadas relevantes procuram e valorizam, como explicitarem claramente o que esperam delas. Quando pensamos nos clientes-alvo, ou nas partes interessadas de um sistema de gestão, concentramos-nos no que eles procuram e valorizam. No entanto, numa relação económica saudável, a relação é ganhar-ganhar. Assim, porque não equacionar também o que a nossa organização procura e valoriza na relação com o outro? Ao fazê-lo, talvez se saliente que alguns elementos de uma dada parte interessada não nos podem dar o que queremos e, assim, percebermos que não são o nosso alvo.

Amanhã continuamos com a parte II, iniciando pela política do sistema de gestão.









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