"Monseigneur, vos prêtres de village savent-ils ce qu'ils font à chaque messe?"
"Monsenhor, acredita que os seus curas de aldeia têm consciência do milagre que realizam em cada missa?"
Frase atribuída a Antoine de Saint-Exupéry.
Eu tinha um tio, que sempre me tratou por Carlitos, quando o conheci era cura de uma aldeia nos arrabaldes de Coimbra no final dos anos sessenta do século passado.
Nos últimos vinte e tal anos desenvolvi uma relação especial com ele. Talvez por ser o irmão mais velho do meu pai, que perdi há vinte anos, talvez por ser um idoso interessante que me deixava muitas vezes com a ideia de que dizia menos do que sabia, talvez por ser alguém que sempre perguntava pelo nosso trabalho, alguém que fazia perguntas fora da caixa, “O que é isso da nuvem?”
O meu tio deixou este mundo com mais de 95 anos numa data fácil de recordar, 10 do 10 de 2020. Herdei alguns bens pessoais como o seu terço, como alguns livros e coisas simples como um pequeno globo terrestre que quando eu era miúdo me parecia enorme.
No último mês, ando numa fase muito feminina na minha organização do trabalho. Planeio trabalhar em 3 ou 4 projectos distintos por dia, um bocado de cada vez. Permite-me trabalhar a fundo num projecto e quando a mente começa a cansar-se do tema e a querer fazer batota mudamos para outro. Ontem, dediquei cerca de uma hora a fazer algo que estava prometido há muito tempo, integrar algures no escritório uma quantidade de livros e revistas que estavam guardados nos arrumos da garagem de casa. Isso levou-me a mexer noutras coisas, e dei comigo a abrir uma caixa com um pequeno tesouro de coisas simples do meu tio, um terço, duas lupas, duas máquinas de calcular, algumas bugigangas e três livros: "A 25ª hora", "A rebelião das massas" (este fui eu que lhe ofereci, ainda tem os meus sublinhados a laranja benetton), e um livro que me lembro de ler duas vezes. À primeira não percebi e à segunda adorei. É o livro da foto, “Ortodoxia” de Chesterton.
Sentei-me e agarrei-o como se fosse uma relíquia e folheei-o … os meus livros têm sempre a minha marca, os sublinhados benetton, os do meu tio têm sublinhados a lápis e comentários breves.
Quando o meu tio morreu tive o privilégio de escolher alguns livros de entre a sua biblioteca: de filosofia, de psicologia, de história, de religião e algo mais. Entretanto, descobri que o cura da aldeia dos anos sessenta era um ávido leitor que sublinhava e comentava o que lia, um homem organizado que registava todas as entradas e saídas de dinheiro, até encontrei um pequeno diário onde regista o dia de Março de 62 onde levou o meu pai de carro para Lisboa para ir apanhar o avião para Luanda onde, como regente agrícola, iria trabalhar no algodão de Malange e estar perto da namorada.
Tenho saudades do meu tio… e sim, acredito que ele tinha consciência do milagre que realizava em todas as missas.
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