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A tabela que se segue ilustra a transformação vivida pelo sector do calçado entre 1998 e 2006:
Uma quebra de 32% na quantidade produzida!
Uma quebra de quase 34% no emprego!
Uma quebra de 22% na facturação!
Uma quebra de 10% no número das empresas!
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Tudo isto, para quem faz uma análise superficial, ou para quem está demasiado preso a modelos mentais do passado, só tem uma interpretação: é o descalabro!
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Assim, começa logo a procissão das previsões da desgraça. A minha preferida é esta, de Março de 2005, publicada em editorial pelo Jornal de Negócios:
“Só não é ainda uma catástrofe, porque vai ficar pior: o sector do calçado, ex-libris da nossa indústria tradicional, um caso exemplar de modernização, caminha silenciosamente para a morte..
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Os últimos anos já estão marcados pelo definhamento. A produção regrediu 4% em meia década.
O sector atravessa, portanto, uma crise bastante mais grave do que a média do país.
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O que torna tudo isto muito mais inquietante é ver que, entretanto, aos outros aconteceu pior.
Na União Europeia, um quarto do sector foi varrido do mapa em cinco anos. E na América do Norte, Estados Unidos e Canadá, pura e simplesmente já não se fabrica um par de sapatos.
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O colapso dos outros é uma angústia apenas e só porque mostra o destino que espera por nós. As nossas empresas de calçado fizeram a reestruturaração necessária, modernizaram-se e reduziram custos. Mas isso já não chega para sobreviver.
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Do exaustivo trabalho realizado por Daniel Bessa ao sector do calçado nacional não é possível tirar duas conclusões. As empresas que não tiverem a capacidade de sair do território nacional estão condenadas."
Este texto sempre me fascinou pelo espectacular tiro ao lado (e não o digo agora, já o dizia em 2008)
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Outro exemplo de como o pensamento dominante, superficial, ou incapaz de interpretar o que se está a passar a uma nova luz, se engana completamente, é ilustrado por esta sentença de André Macedo num editorial do Diário Económico em Fevereiro de 2008:
“Acontece que o abandono progressivo das actividades com baixo valor acrescentado (têxteis, calçado) é uma estrada sem regresso possível e sem alternativa. Vai doer, mas só assim o país ficará mais forte e competitivo.”.
Perante a evolução do quadro acima e, imbuídos do pensamento retratado nestes editoriais, o pensamento dominante começa a propagar uma imagem negativa do sector, concentra-se em amplificar a mensagem dos que perdem com esta mudança: os empresários falidos e os trabalhadores desempregados. Essa amplificação do negativo não deixa largura de banda para salientar o lado positivo, para mostrar o exemplo dos que estão a dar a volta por cima e porque é que estão a dar a volta por cima. Assim, por falta de amplificação dos exemplos positivos, a velocidade da reconversão é mais lenta.
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E o que aconteceu com o calçado, sujeito ao choque chinês, que fez as multinacionais aqui instaladas debandarem para a China, é, de certa forma, o que está a acontecer com a nossa economia desde o fim do crédito fácil e barato para o Estado e para os privados (por exemplo, o peso do crédito a particulares no total do crédito interno chegou a atingir 46% em 2006).
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O fim do crédito fácil e barato tornou insustentável a situação de muitas empresas, em muitos sectores. O pensamento dominante entretém-se com o cortejo dos coitadinhos, amplificando a mensagem dos empresários que faliram e dos trabalhadores que ficaram desempregados. Mais uma vez, essa amplificação do negativo não deixa largura de banda para salientar o lado positivo e mostrar que há alternativa. Depois, ficam surpreendidos, quando as estatísticas começam a traduzir uma realidade incompatível com o seu modelo mental e, só mais tarde, contrariados, vencidos, é que são obrigados a reconhecer uma realidade até então incompatível com os seus modelos mentais.
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Continua com: O que é que acontece durante uma reconversão.
3 comentários:
Excelente análise.
Não há alternativa à busca de captação de mais valor por unidade, condição necessária para a melhoria salarial.
A quantidade nunca será relevante numa pequena economia europeia, com o actual contexto global.
Acredito que este é o caminho.
Umas simples contas conseguem demonstrar que as conclusões retiradas pelo jornalista nunca podiam ser essas.
Resta saber se foi uma questão de incompetência ou de narrativa.
€ Faturação / # Pares
1998 16,27583235
2006 18,68368159
1998=100 14,79%
€ Faturação / # Trabalhadores
1998 31467,04625
2006 36955,21935
1998=100 17,44%
€ Faturação / # empresas
1998 1068236,793
2006 924416,4365
1998=100 -13,46%
O único valor que podia induzir algumas reticências era o de Faturação por empresa mas talvez existam várias razões para tal:
a) As empresas são mais lentas a desaparecer do que os efeitos que levam a esse desfecho se fazem sentir nas estatísticas;
b) Em 2006 ainda se estava a meio da reconversão/reestruturação do sector e muitas empresas ainda não estavam adaptadas ao novo ecossistema
Seja que razão for é impossível não constatar o impacto tremendo que as empresas mais capazes e mais rápidas a adaptar-se às novas condições de mercado tiveram no sector em termos de valor acrescentado por par e por trabalhador.
Faz lembrar um pouco o ciclismo onde quem faz uma fuga bem sucedida acaba por puxar a equipa na prova daquele dia e na classificação geral.
Caro Ricardo,
" as conclusões retiradas pelo jornalista nunca podiam ser essas.
Resta saber se foi uma questão de incompetência ou de narrativa"
A situação é ainda mais grave. O jornalista do JdN apenas se limitou a citar as conclusões de um estudo liderado por Daniel Bessa. Por isso, acho que é mais um problema de modelo mental e não de incompetência ou desonestidade.
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As pessoas têm um modelo mental e vêem o mundo de acordo com esse modelo mental. Assim, têm tendência a naturalmente seleccionarem os números que estão de acordo com a sua leitura do mundo.
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