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sábado, abril 08, 2023

Hódie siléntium magnum in terra est

"Lemos nos catecismos que a fé é um dom da graça de Deus.

Mas a fé é, ao mesmo tempo, um ato humano, uma fé peregrina que, enquanto caminhamos neste mundo e neste corpo, nunca pode libertar-se plenamente da penumbra das dúvidas, das limitações da nossa razão, da linguagem, da experiência e da imaginação. Se a fé for viva, será repetidamente ferida, exposta às crises, sim, às vezes até pode ser aniquilada. Dizendo de forma mais amena: há momentos em que a nossa fé, na sua configuração atual, morre - para que possa ser novamente ressuscitada e transformada. Sim, apenas uma fé ferida, na qual são visíveis as «marcas dos pregos», é credível; apenas esta pode curar. Receio que uma fé que não passou pela noite da cruz e que não foi atingida no coração não tem esse poder. Uma fé que nunca ficou cega, que nunca viveu nas trevas, dificilmente pode ajudar aqueles que não viram e não veem. A religião dos «que veem», farisaica, pecaminosamente autoconfiante, a religião não ferida dá pedras em vez de pão, ideologias em vez da fé, teorias em vez do testemunho, advertências em vez da ajuda, obrigações e proibições em vez do amor misericordioso.

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Não pode ser tudo claro para nós. Ainda não contemplamos a face de Deus. Se a nossa fé for viva e verdadeira, há nela lugar para perguntas, buscas e inúmeras dúvidas. Dizia Martin Heidegger que «o questionar é a piedade do pensamento». As nossas dúvidas não podem ser um obstáculo pecaminoso no caminho para Deus, porque não são dúvidas orgulhosas sobre Deus, mas sim dúvidas sobre as nossas próprias ideias religiosas. Podem ser, pelo contrário, consideradas uma manifestação de humildade que nos aproxima de Deus e nos abre ao seu mistério."

Trechos retirados de "O tempo das igrejas vazias" de Tomás Halík. 

sexta-feira, abril 07, 2023

"Na cruz, morrem as nossas ideias ingénuas sobre Deus"


"Só quem não responde ao mal, quem não retribui os golpes e, assim, trava a espiral da vingança, se torna um espelho no qual vemos o mal tal como é. O inocente, ao contrário de todos os outros, torna-se um espelho puro, não distorcido, diante do mundo. Tal como está escrito, veio para revelar os segredos de muitos corações (cf. Lucas 2,35). O inocente irrita tanto mais o mal quanto o priva das desculpas e de álibis, condena-o sem falar ou culpar. Ao renunciar à violência e à vingança, torna-se o cordeiro sacrificial: o cordeiro que carrega sobre si os nossos pecados, as nossas sombras, as dívidas, as culpas do mundo.

Sim, a cruz é o espelho no qual podemos ver o mal em toda a sua nudez e atrocidade. Esta é a outra face do mundo, na qual estamos envolvidos pelos nossos actos, palavras e pensamentos, ou por não fazermos tudo o que podíamos ou devíamos fazer para o bem dos outros.

Olhemos na luz da fé para o espelho da cruz. Pensemos na espiral do mal que constantemente é posta em marcha. [Moi ici: Por mim] Nunca sabemos onde chegará uma bofetada ou uma palavra dura que lançámos para o mundo. As injustiças sofridas dão origem a mais injustiças; as pessoas vingam-se, frequentemente, por injustiças, descarregando a sua raiva nos outros, nos mais fracos.

Na cruz está suspenso aquele que travou o mal oferecendo a sua face, tornando-se um espelho no qual vemos o mal sem máscaras e sem desculpas. Olhemos para a cruz com os olhos da fé.

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Os sacerdotes modernos são criticados por falar pouco do Inferno nas suas pregações. Talvez isto aconteça porque a noção do Inferno está associada a ideias infantis ou mesmo perversas no imaginário de muitas pessoas. Não podemos levar a sério os diabos dos contos de fada populares para assustar as crianças, nem as fantasias sadomasoquistas dos pregadores barrocos que falam das câmaras de tortura do submundo para assustar os adultos. Estas ideias perderam força face às experiências históricas com os infernos que as pessoas prepararam umas para as outras na Terra, principalmente nas guerras modernas, nos campos de concentração comunistas e nazistas e nos crimes terroristas do nosso tempo. O Inferno, diz o catecismo, é o estado de separação de Deus. É um estado em que o ser humano se afasta do mais íntimo sentido de vida, isto é, da comunhão com Deus, da vida no amor, É este o estado que testemunha o grito de Jesus na cruz: «Meu Deus, Deus, porque me abandonaste?»

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O Cordeiro que tira o pecado do mundo leva até Deus as perguntas dolorosas de todos os que sofrem. De todos os infernos terrestres, das câmaras de tortura e campos de concentração, dos hospitais sobrelotados, dos abismos escuros de dor e miséria ressoa a pergunta: «Porquê», a mesma que Jesus grita da cruz para a nuvem escura do silêncio de Deus.

Sim, Jesus desceu a um círculo mais profundo do Inferno, ao Inferno do afastamento de Deus, do silêncio de Deus, na hora da provação. Na cruz, morrem as nossas ideias ingénuas sobre Deus.

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Deus deixa o seu Filho passar pela noite escura da fé: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» Chesterton recomendava Cristo como o «Deus para ateus»: se os ateus tivessem de escolher uma religião, deveria ser o Cristianismo, pois, nele. por um instante, Deus parecia ser ateu. A sua fé foi «crucificada» e trespassada pela distância infinita de Deus. «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» O grito de Jesus parece, à primeira vista, uma expressão de desespero. No entanto, Jesus exprime esta experiência extrema com uma pergunta - «Porque me abandonaste?» Não deixa de questionar, não interrompe o diálogo com o Pai, mesmo quando, naquele momento e em agonia, já não pode esperar uma resposta, do ponto de vista humano. Jesus experimenta o completo abandono de Deus, e, mesmo assim, dá voz à sua pergunta na escuridão. Este momento da cruz (e da cruz da sua fé, se assim podemos dizer revela algo essencial sobre o carácter da fé cristã: a autêntica fé dos discípulos de Jesus tem um carácter de «no entanto», de «apesar de». É uma fé ferida, trespassada e, ainda assim, uma fé que sempre questiona e busca, uma fé crucificada e ressuscitada, ou seja, uma fé verdadeiramente pascal.

«Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» O hebraico tem duas palavras para o «porquê»: madua (questiona a causa) e lamá (questiona o sentido, o propósito). A palavra que foi aqui, aparentemente, pronunciada, lamá, significa: para quê? Qual é o propósito? Qual é o sentido de tudo isto?

Não esqueçamos que a pergunta dolorosa de Jesus se dirige a Deus - é, portanto, uma oração. Também nós podemos dar às nossas perguntas a forma de uma oração e às nossas orações a forma de perguntas."

Trechos retirados de "O tempo das igrejas vazias" de Tomás Halík. 

segunda-feira, abril 03, 2023

O que é a verdade?

 Ontem foi Domingo de Ramos, onde na leitura do Evangelho Jesus é apresentado ao governador Pilatos. Na noite anterior tinha sublinhado na minha leitura:

"participei num debate televisivo de domingo [Moi ici: Nos anos 90 na república checa] com altos representantes desses dois grandes partidos. Ao sair do estúdio, perguntei a um deles: 

- «Agora que estamos a sós, sem câmaras e testemunhas, diga-me, o senhor sabe que tudo aquilo que disse ali durante aquela hora não é de todo verdade, pois não?» 

Olhou para mim com um misto de pena e de desprezo: 

- «Verdade? Qual verdade? Eu dirijo-me aos meus eleitores e a outra parte aos seus.» 

Até hoje, ouço o profundo desprezo com o qual pronunciou a palavra verdade, como se fosse um conceito vulgar da rua. Por outras palavras: a nós, não nos interessa minimamente o que é a verdade, não perdemos tempo com uma pergunta dessas. Pagamos as sondagens, sabemos o que os nossos potenciais eleitores querem ouvir e dizemo-lo a eles. Eles dão-nos os seus votos, o acesso ao poder e ao dinheiro. Quem não entende esse mecanismo, que não se atravesse no nosso caminho.

Naquele dia, compreendi o que Pilatos disse a Jesus: Verdade? O que é, afinal? Qual é o seu valor? Apenas o poder tem valor: não entendes que tenho o poder de te libertar ou de te crucificar?"

Trecho retirado de "O tempo das igrejas vazias" de Tomás Halík.