sábado, agosto 23, 2025

O medo como discurso político

Somos constantemente moldados pelo ambiente externo que nos rodeia. Durante o tempo da troika, para resistir ao pessimismo generalizado, procurei evitar os profetas da “espiral recessiva” que alimentavam um clima de desânimo. Não ver notícias era quase um antídoto contra o veneno da narrativa dominante. Aqui no blogue deixei os meus avisos:

"Não veja televisão. Não veja as notícias! São um veneno!" (Maio de 2013)

- Condenados pelos limites que nós próprios criamos para nós mesmos (Maio de 2013)

No país da espiral recessiva, ainda bem que há quem não veja notícias (Dezembro de 2013)

"The Moment of Clarity" (parte I) (Março de 2014)

Há dias, seguindo um conselho de Rory Sunderland, comecei a ler o livro Blindsight. O livro começa por relatar várias experiências. Por exemplo:

""Can People Distinguish Pâté from Dog Food?"" [Moi ici: Em testes cegos as pessoas não conseguem distinguir]

...

[Moi ici: Outro exemplo] If anyone should be able to taste something for what it is, it's a sommelier. These wine experts go through years of reading, drinking, eating, and testing, better known as formal wine education, to be formally certified. Soms' sense of taste is amazing. One sip and they are able to tell the wine they are drinking, the species of grapes involved, what country it is from, and the vintage year of the bottle.

In a deliciously devious experiment,? Frederic Brochet at the University of Bordeaux showed that taste is fallible even for these supertasters. He provided sommeliers with two different glasses of wine, one red and one white, and had them review each wine. Unknown to the sommeliers, the red wine was the exact same wine as the white, just with red food coloring added. Not only were the wines perceived as tasting completely different, but the "red" wine was described as if it had red ingredients. Tasters of the white wine described it with flavors like "honey" and "citrus," while the red wine was described as tasting like "raspberry" and "mahogany." This is despite identical information reaching the tongue. The dog-food eaters shouldn't feel too bad; the pros get fooled, too."

E agora vem o cerne:

"We don't experience the food we eat directly. There's a massive gap between the objective sensation of the food hitting our tongues and what our brains ultimately experience. As the late great philosopher Alan Watts describes, "We eat the menu, not the food." In other words, we're always one step removed-experiencing our own internal description of the world, rather than the world itself.

In neuroscience, this gap is humbling evidence of perceptual fallibility: we don't, perhaps can't, experience the world as it is. In marketing, this gap represents something else altogether: opportunity. The opportunity to tweak, influence, and fundamentally alter consumers' innermost experience of reality. What more could a marketer want, in their pursuit of persuasion, than the ability to alter reality itself in their favor?"

O que Blindsight mostra em laboratório — a falibilidade da percepção, a distância entre estímulo e experiência — confirma e reforça o que escrevi no tempo da troika: somos constantemente moldados pelo ambiente externo e pelas histórias que escolhemos (ou recusamos) ouvir. A experiência não é neutra; é construída. E, como no marketing, também na política e na vida social essa brecha entre realidade e percepção abre espaço para manipulação — ou, ao contrário, para libertação, se soubermos escolher as narrativas que nos alimentam. 

Entretanto, esta semana ouvi uma entrevista com David Priestley que recomendo vivamente. Segue-se um trecho de 1 minuto sobre o poder do contexto no mundo dos empreendedores: 


Mais uma vez, a mesma ideia: o ambiente molda perceções, decisões e comportamentos.

E é neste ponto que encontro eco numa entrevista recente de António José Seguro, que declarou ao Diário de Notícias: 
O meu papel é levar a esperança onde há medo. E hoje há muito medo na sociedade portuguesa.
O recurso à palavra “medo” não é inocente. Ao identificar uma emoção negativa, supostamente predominante, posiciona-se como o antídoto: a esperança. Procura vestir-se de messias, o candidato que traz redenção num clima dominado pela ansiedade. Ao mesmo tempo, capitaliza a insatisfação: se os portugueses estão desiludidos, não precisa ainda de apresentar soluções concretas — basta prometer uma mudança de atmosfera. A sua retórica desenha uma narrativa binária, medo versus esperança, convidando o eleitor a escolher entre permanecer no medo ou apostar na esperança. É uma mobilização emocional, já que tantas vezes se vota mais pelo sentimento do que pelo programa.

No entanto, esta estratégia tem riscos. Se enfatizar demasiado o medo, pode amplificar a ansiedade em vez de a atenuar. O eleitor pode pensar: “Se até o candidato diz que vivemos no medo, então a situação deve ser ainda pior do que eu imaginava”, afastando os que procuram serenidade. E, se a esperança não for acompanhada de propostas concretas, a mensagem corre o risco de parecer um slogan vazio, uma palavra bonita sem substância.

Estranho, por isso, que Seguro tenha apostado precisamente no medo como eixo central do seu discurso.


Estando ele numa posição de "influencer" pode alterar a realidade e fazer com que mais pessoas sintam medo.

BTW: Algo interessante, ao falar de medo de forma genérica, Seguro mantém a mensagem flexível, permitindo que cada eleitor projete no discurso o seu próprio medo e encontre nele correspondência. Por exemplo, ao ouvi-lo, um eleitor do Chega pode rever-se no medo acerca da imigração.

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